TRAUMA DE JUVENTUDE

Reflexões inacabadas

 

Muito prazer. Meu nome é Paulo Vogel, sou publicitário, já fui empresário, hoje me dedico à consultoria nas áreas de administração e marketing, e, desde que me entendo por gente, sou um insatisfeito. Acho que já nasci insatisfeito. Tem gente que acredita ser hereditário, o que não duvido porque, enquanto a maioria das pessoas nasce num prazo de 9 meses (ou até menos), eu tive de ser tirado a forceps da barriga de minha mãe antes de completar 10 meses de gestação. Mas isso é só uma brincadeira para relaxar a tensão inicial que me assola. A minha infância até que foi bem feliz, como deve ter sido a de todos aqui, fora alguns puxões de orelha, uns beliscões, umas palmadas e alguns castigos. Nossos problemas só começam na adolescência. Aos 14 anos já procurava na fumaça do cigarro o segredo da vida. Há três anos larguei do vício, mas não da procura. É por causa dela que estou aqui.

 

Na minha memória existe um fato que ocorreu por volta de 1965 ao qual atribuo a origem do que tem sido a minha busca onde quer que eu tenha estado. Eu era um adolescente começando a amar os Beatles, mas meu herói ainda era meu pai. Ele era um comerciante, na verdade, por ofício, um confeiteiro. Dedicou a vida a uma só missão:  fazer bolos, doces, biscoitos e pães da melhor maneira que eles pudessem ser feitos. Eu o admiro por isso. Foram mais de 50 anos dando continuidade a uma história que começara no final do século XIX, em 1898, com o nome de Padaria Alemã, pelas mãos de Maria Vogel, tia de meu pai. Mas a intolerância dos tempos da Primeira Guerra Mundial, obrigou à mudança do nome para Padaria e Confeitaria Petrópolis. Quando tudo passou, para preservar seus valores, adicionou ao nome um providencial "Ex-Alemã". Foi com este nome que se tornou conhecida e parte das tradições petropolitanas.

 

Em algum dia daquele ano, meu pai chegou para o jantar com um ar desanimado. Perguntei o porquê e nunca mais me saiu da cabeça o seu relato. Àquela época, o Brasil navegava em uma inflação anual de 40% e os salários eram reajustados uma só vez, em primeiro de maio. Por livre e espontânea vontade, no ano anterior, meu pai resolvera aumentar seus funcionários, de três em três meses, com base na inflação do trimestre passado. Assim, quando chegou maio, para que os salários ficassem de acordo com o reajuste anual, bastava aplicar o índice referente aos últimos três meses. Agindo desta forma, ele proporcionava uma remuneração anual significativamente maior que a da maioria dos empregados de outras padarias. Não sei se por descuido dele ou se pela jurisprudência da época, o sindicato da categoria entrou na justiça do trabalho alegando que eram aumentos espontâneos e reivindicaram a aplicação integral do índice anual sobre o salário de abril. A justiça lhes deu ganho de causa.

 

Todo empregador já viveu experiências semelhantes no relacionamento com empregados. Mas, ali, era apenas um garoto vendo seu pai desiludido e revoltado com a justiça que o punia por ser mais justo que a lei. Perguntei se ele havia explicado direito e sua resposta foi mais ou menos a seguinte: "Expliquei, meu filho, mas não quiseram entender. O que me entristece é que eles, ao final, saíram perdendo. A partir de agora, aumento, só quando e quanto a lei mandar.". Ali, mais tarde eu fui entender, a justiça havia dado uma lição a meu pai de como se devia tratar os empregados. Mas, ao mesmo tempo, um garoto jurava que um dia encontraria as respostas a seus tantos por quês e então poderia consolar seu pai dizendo: "Não fique triste, meu pai, eu descobri porque eles agiram assim". No dia seguinte, já esquecido da jura, eu cantava "Help" a plenos pulmões.

 

Trinta anos e muitas frustrações depois eu me dei conta de quanto aquele fato havia interferido na minha vida. Desde aquele dia, vivo numa incessante busca pelo entendimento de por que as pessoas agem do jeito que agem. Por que pensamos o que pensamos? Por que não me entendo com meu pai ou por que eu e meu filho brigamos tanto? Por que minha mulher faz tudo o que eu detesto só pra me provocar? Por que empregados conspiram contra patrões e patrões tratam empregados como uma manada de búfalos que precisa ser contida? Por que as relações entre empregadores e empregados têm que necessariamente ser na base do eu finjo que pago e eles fingem que trabalham? Por que temo tanto o meu vizinho? Por que trabalho no que não gosto e com quem não gosto? Afinal, o que comanda nossas atitudes? Qual a lógica do ser humano se é que existe alguma?

 

No trajeto de líder que fiz de monitor de uma patrulha de escoteiros até empresário de propaganda, estudei, testei, tentei, usei, experimentei as mais diversas teorias sobre o que está no cerne das relações humanas em geral, e em particular entre empregadores e empregados. Vi muita receita fácil e pouco diagnóstico. Pílulas de nada, se bem não fazem, nada fazem. O mundo está repleto de livros e pessoas que nos dizem "como" fazer. Tem sempre alguém disposto a nos transmitir a "sua" verdade. Isto é tão forte no ser humano, que virou uma técnica de abordagem quando se está procurando emprego. Os "especialistas" dizem que em lugar de pedirmos um emprego ou uma indicação, devemos pedir ao entrevistador "seus conselhos sobre como devo proceder na procura de uma nova colocação profissional". Ora vejam só! Uma seita me diz para meditar e que melhor seria se o fizesse junto a um monge Tibetano. Como ficaria o mundo se todos se convencessem desta "verdade"? E como ficaria o Tibet? Há pouco tempo assisti a uma palestra onde me aconselharam a passear pela floresta para me energizar. E, last but not least, a olhar para o tomate na feira à procura do belo. Não sou contra florestas ou tomates, apenas florestas só me serão benéficas se eu me sentir bem nelas e tomates não são exatamente o meu referencial do belo. Eu não posso aconselhar ninguém a andar por duas horas ao longo do calçadão da praia junto com um amigo como forma de se sentir mais feliz. Mas eu sou mais feliz quando faço isso. O fato de você aconselhar alguém a ir à igreja como forma de encontrar a paz interior, e esta pessoa ir e gostar de ter ido, não quer dizer que ir à igreja trás a paz. O que teimamos em não ver é que a pessoa aceitar nossa sugestão significa que ela estava à procura de um lugar que tivesse elementos que lhe transmitissem a sensação de paz. Por estar à procura, ela está disposta a experimentar novos ambientes e testar suas sensações quando nele inseridas, e isto até encontrar o que lhe proporcione o que procura. Mas não nos interessa entender desta maneira. Estamos sempre desejando ver nossas idéias, crenças, atitudes, comportamentos e opiniões, adotados pelos outros. É muito doido! Precisamos que nossa verdade seja a verdade do outro! Assim como parece ser o que estou fazendo neste exato momento: convencê-lo de minhas ideias. Isto nos dá uma sensação de possuidores da verdade. As formuletas deste tipo até seriam aceitáveis se viessem acompanhadas de atestado de responsabilidade caso alguma coisa saísse errada. Mas este ninguém está disposto a assinar. Na hora em que alguma coisa sair errada, sempre haverá uma resposta na ponta da língua: "Ah! mas é que você não fez direito." Ou então uma bem calhorda, do tipo: "Mas você deu os três pulinhos, rodopiou, repetiu cinco vezes sapo-sêco-mangalô? Não? Então foi isso."

 

Na verdade o que está em jogo é o poder. E liberdade de pensamento e poder nunca tiveram um convívio produtivo. Quando todos pensam de um mesmo modo, fica mais fácil a dominação.

 

Ao longo de toda a história da humanidade, a supressão das liberdades sempre foi o primeiro ato do dominador e padronizar é a fórmula de garantir ausência de questionamentos. O poder é frágil porque se apóia em uma premissa falsa, a de que existe uma verdade.

 

Paulo Vogel