NEGLIGÊNCIA

ou VANTAGEM CONTRA

 

O enterro foi na manhã de sábado, 17 de julho. Ainda estamos com a mente e os sentimentos confusos quando começo a escrever. Nossa mãe, aos setenta e sete anos, faleceu, vítima, ao que parece, de uma parada cardíaca que se seguiu a um edema pulmonar quando se submetia à sexta sessão de quimioterapia para combater o câncer de colo de útero diagnosticado quatro meses antes. É o que consta do atestado de óbito.

Saímos de casa, eu e ela, às oito e meia da manhã. Ela estava faceira, vivaz, esperançosa, conforme exigia o trato que fizera com a medicina e com Deus. A despeito de todos os seus medos e suas dores, e com sua dignidade ferida pela perda de peso e cabelos, ela respirava, sorria e seguia. Ela não seria o motivo para alguma coisa sair errada! Temente, acompanhava orações pela TV, prendia imagens do Coração de Jesus pela casa, ia à missa e rezava e pedia um pouco mais de tempo. Tempo para seus netos lhe darem bisnetos, tempo para cuidar um pouco mais do homem de sua vida, tempo para demonstrar mais carinho por todos nós. Somando tudo, a medicina, Deus e seu compromisso em viver, ela acreditava estar segura, em boas mãos. Nada do que duvidar.

Estacionei no pátio do centro de tratamento oncológico. Saltamos, ela veio junto a mim e seguimos de mãos dadas, o que, na linguagem cifrada de suas emoções significava “que bom você estar comigo, estou feliz”. Devo dar um esclarecimento sobre seu estado. Depois de cinco sessões de quimioterapia, uma a cada 21 dias, nossa mãe ficara pequenininha, magrinha. Após a quinta sessão e os resultados de diversos exames, ela fizera uma cirurgia para retirada do útero. Recuperada, ou pretensamente recuperada da intervenção, a indicação médica foi de retomada da quimioterapia. A desta última sexta-feira seria a primeira de uma série, angustiante, de três sessões. Seu desejo de parar com aquilo era tanto que já calculara nos dedos e me dizia “que a última será no dia 28 de agosto”. E ela poderia estar curada! Meu pai não estava aí como prova de que, se o câncer não tem cura, pelo menos dá para controlar!?

Entramos no salão de recepção, estranhamente vazio. Apenas uma paciente aguardava ser chamada. Ficaram as duas, já amigas de terapia, trocando notícias. Não demorou dois minutos e lá seguiram as duas para cumprir, com resignação, a determinação de seus médicos. Eram nove e quinze da manhã. Fui ler um pouco.

Quimioterapia é o processo pelo qual se injeta na veia do paciente um veneno extraído da casca de uma árvore que existe apenas no Canadá. São necessárias várias sessões e cada uma delas dura entre quatro e cinco horas. Em uma porcentagem bastante alta de pacientes, a droga provoca reação alérgica, exigindo imediata administração de um antialérgico. Feito isto, o processo é retomado. Como nossa mãe teve uma pequena reação na primeira sessão, todas as demais sessões iniciaram com a aplicação do antialérgico. Dado o tempo de demora e o fato da pessoa ter uma agulha espetada na veia e não poder se mexer, o tratamento é feito em uma sala em que os pacientes ficam em poltronas confortáveis e, no caso desta instituição, podendo assistir ao que passa em um aparelho de TV que permanece ligado todo o tempo. Considerando a necessidade de monitorar o gotejamento da droga, o risco de alergia e as solicitações dos pacientes (reais ou emocionais), dois enfermeiros precisam ficar “ligados” nos pacientes, indo de um a outro de acordo com o que observam. Atenção, ou melhor, uma certa dose de tensão, portanto, é fundamental.

A quimioterapia é arrasadora para o organismo. Nos dois primeiros dias tem-se uma falsa impressão do efeito, pois o paciente não apresenta qualquer alteração. A partir do terceiro dia surgem as reações. Dores e intestino preso são as mais comuns, e perduram por uma semana, dez dias. Se a pessoa tem uma vida saudável, na segunda semana as coisas melhoram e na terceira podemos dizer que o estado do paciente é normal. Mas aí já se passaram vinte e um dias e está na hora de uma nova sessão.

A presença de um familiar não é necessária do ponto de vista prático. Os enfermeiros podem suprir quase tudo, menos as carências afetivas. Só quem nos ama nos dá segurança emocional. Só a presença de quem amamos faz nosso coração bater sem sobressaltos. Era esta a razão de eu ou minha irmã sempre irmos com ela, mesmo que para ficar sentado na recepção. De tempo em tempo íamos à sala de terapia para lhe sorrir e mostrar que tudo estava bem e saber se ela queria alguma coisa. Naquele dia, ela pediu café com leite e biscoito na primeira vez. Na segunda, apenas um cafezinho puro. Na terceira, nada quis. Na quarta vez fui lá para me despedir. Minha irmã chegara para me substituir, pois eu “tinha” que estar na empresa à tarde. Nunca tal relevância se provou tão ridícula! Mas naquele momento eu ainda não sabia.

Meu pai me esperava para almoçar. Passava pouco de uma hora da tarde quando nos sentamos para comer. Almocei e fui cochilar por meia hora para não sentir sono ao volante quando estivesse na estrada a caminho do Rio. Era quase duas horas da tarde quando minha irmã liga para dizer que nossa mãe tivera uma parada respiratória. Mais meia hora e me diz que, após três paradas cardíacas, o coração de nossa mãe não resistiu. Como? Ela estava tão bem há pouco mais de uma hora? O que aconteceu naquela sala que eu não sei? Estou confuso, perplexo, não aceito, não entendo. Mas preciso entender para aceitar.

Depois que consegui dar a notícia a meu pai, minha mente passou a buscar uma resposta. Penso, penso, penso e me concentro em uma questão: minha mãe morreu pelo que foi feito (ou não foi feito) a ela naquela sala.  Ou, por outro ângulo, se ela lá não estivesse ido, posso supor, com grande margem de acerto, que ela estaria viva agora. Seja lá o que ela tenha tido, um edema, queda da pressão arterial, o que seja, ela o teve por estar sendo submetida àquele tratamento. Isto quer dizer, em primeiro lugar, que a quimioterapia é capaz de produzir efeitos que podem levar um paciente a enfrentar risco de morte. Em segundo lugar, quer dizer que o máximo de atenção e cuidado devem ser dedicados aos pacientes, pois nunca se sabe o que e quando algo pode sair errado.

Quanto mais eu penso, mais transparece a negligência como grande vilã. Se a quimioterapia debilita, ao debilitar, obviamente, aumenta o risco de morte e, se assim é, a indicação de uma sessão precisa ser muito bem avaliada. Esta me parece ter sido a primeira negligência, na medida em que três semanas antes saíra da mesa de operação. É possível que se argumente que esta avaliação é difícil de ser feita e que o nível de incerteza é grande. Posso aceitar o argumento, mas aí teremos que discutir que, se a vida do paciente está tão exposta assim, o tratamento, obrigatoriamente, tem que ser administrado em unidades hospitalares estruturadas para lidar com emergências oriundas desta incerteza. Minha mãe, quanto a isto, não teve qualquer chance, pois o centro oncológico não tem recursos que um hospital tem. Ressalte-se, ainda, que, se se admite que os pacientes correm risco de morte ao fazer o tratamento, paciente e familiares devem ser clara e abertamente informados tanto de tais riscos, quanto da inexistência de instalações e equipamentos para emergências críticas.

Até aqui estamos lidando com o que podemos considerar “características do processo”. Negligências discutíveis, carregadas de “mas”, “talvez”, “se”... A indignação vem da negligência conseqüente dos que tinham como principal tarefa não ser negligente. Recordemos que a clínica estava surpreendentemente vazia. Nas vezes anteriores, as sete poltronas da sala de terapia estavam ocupadas. O que isto significa? Explico. As pessoas ignoram o que seja quimioterapia. A expectativa da primeira sessão é muito grande, pois quase nada se sabe sobre o que vai “nos” acontecer lá. Ao voltar da primeira sessão, nossa mãe nos contou que lhe chamou particularmente a atenção encontrar um ambiente com a maioria dos pacientes partilhando suas esperanças muito mais que os medos, ao contrário do ambiente baixo astral que se poderia imaginar. O segundo aspecto - e ela contou com ênfase -, é que os enfermeiros ficavam o tempo todo indo de um paciente a outro, verificando, trocando, corrigindo, enfim, fazendo o que estão lá para fazer. Infelizmente, não nesta sexta-feira.

Quando fui à sala de terapia pela primeira vez, observei que estava vazia, se não me engano, com apenas quatro pacientes, incluindo minha mãe. E já desta vez, percebi os dois enfermeiros atentos, mas não aos pacientes e sim ao que se passava na televisão. O que me chamou a atenção ainda mais foi a postura displicente do enfermeiro sentado em uma cadeira logo à entrada da sala, absolutamente incompatível com a postura que se espera do responsável pelo que acontecia dentro daquela sala. Era tanta sua postura de displicência que ele teve que recolher as pernas para que eu pudesse passar e chegar onde minha mãe estava. Para piorar, estando ele de costas para os pacientes, não veria qualquer coisa que viesse a acontecer a qualquer um deles. Nas outras três vezes que voltei à sala, o cenário que encontrei foi o mesmo.

A existência de poucos pacientes naquele dia deveria ter sido uma vantagem a favor dos que lá estavam. Eles deveriam estar tendo o dobro da atenção que lhes era dada nos dias de ocupação máxima. Mas a televisão, o que ela transmitia, absorvia a atenção de quem estava sendo negligente no exercício de sua profissão. A televisão está lá para distrair os pacientes, tanto pelas horas intermináveis que têm de ficar sentados com uma agulha espetada na veia, quanto para ajudar os pacientes a não se concentrarem em pensamentos ruins, negativos. Mas o poder de distração que a televisão tem age sobre todas as pessoas que estão no ambiente e que não têm outro interesse maior naquele momento.  É fato, portanto, que seu poder está limitado àqueles que se deixam dominar por ela. Esta foi a grande diferença entre esta última sessão e todas as anteriores.

Como seres humanos, podemos e somos negligentes o tempo todo, com quase tudo. Não importa muito, pois as escolhas, as renúncias e as conseqüências, em princípio, dizem respeito apenas a nós mesmos. Como profissionais, no exercício de qualquer atividade, por mais humilde, simples, sem importância que ela possa parecer, não temos o direito de ser negligentes, pois somos sempre parte de um processo no qual estão envolvidas outras pessoas que, por sua vez estão investindo tempo, energia, emoção, dedicação e esperança que cada um cumpra a sua parte. Se é assim em qualquer profissão, o que dizer então de alguém que cuida de vidas humanas? O que dizer do profissional que se distrai quando a essência do seu trabalho é estar atento?

Nossa mãe era uma pessoa lutando pela vida. Cumprindo à risca o que médicos, filhos, marido, sua consciência e Deus lhe pediam para fazer. E ela confiava que todos nós estivéssemos fazendo nossa parte. Alguém falhou. Não sabemos se ela poderia ter vivido mais um dia, um mês, um ano ou mais ainda. A única certeza, é que ela morreu pelo que aconteceu naquela sala. Se foi a droga em si mesma, é preciso que se seja mais rígido na avaliação das condições do paciente antes da decisão de aplicar o tratamento.  Se foi por negligência, nossa tese, queremos que a morte de nossa mãe sirva para chamar a atenção para a correção das causas desta negligência. Se foi por incapacidade profissional (falta de experiência ou qualificação), uma revisão dos requisitos para a função tem que ser feita. Se foi por erro da instituição, seja por falta de instalações e equipamentos, seja por não haver estrutura de supervisão com capacidade de implantar (e fazer cumprir) normas rígidas de conduta, medidas preventivas efetivas devem ser tomadas. Esta análise e as ações conseqüentes são as únicas coisas capazes de dar um sentido à morte de nossa mãe.

A impressão que ficamos da instituição não é boa. Uma pessoa faleceu em função de procedimentos médicos realizados em suas instalações e sob sua supervisão. No entanto, se limitaram a chamar o rabecão, mandar levar o corpo e dar os pêsames à minha irmã. Eu posso entender. A idéia é que quanto menos aparecer, melhor. Quanto menos falar, melhor. É não dar chance para o azar de pegar um familiar que questione além do que eles estão dispostos a responder. Há, ainda, um risco de que acabem sendo convencidos de que falharam e isso, na visão dos médicos, não é bom. No auge de nossa indignação houve quem falasse em culpa e que “isso não pode ficar assim”. Não pode. Mas também entendemos que não houve dolo e na minha visão particular, nem mesmo há culpa no sentido de crime, afinal, o desejo, a intenção do médico, é de que o paciente se cure. Há, sim, responsabilização a ser identificada para que se possa cobrar a eliminação da causa da negligência (se nossa tese estiver correta).

Desde o meio dia e meia, quando fui me despedir, apenas duas pacientes, minha mãe e a amiga, estavam na sala. Pouco depois, por volta de uma hora da tarde, a amiga percebeu que ela estava inerte e uma baba escorria pelo canto de sua boca. Foi quando deu o alerta. Há quanto tempo nossa mãe dava sinais de que algo não estava bem? Há quanto tempo ninguém olhava para ela por estarem atentos à televisão? Correria, portas que se fecham. Ansiedade. Angústia. O fim.

Conseqüência inevitável da doença? Fatalidade? Negligência? A vantagem que funcionou contra? O que os próximos pacientes devem esperar? O que devemos dizer à dona Neuza, onde quer que ela esteja? Ela espera uma resposta porque não foi este o combinado!

Petrópolis, 23 de agosto de 2004

 

Paulo Fernando Vogel