Cheiro de cola

 

 

          Ei, moço! Cadê Deus? Prá lá? Dobra às direita? Obrigado, moço. Assim cheguei, seu Juiz. Quando tinha mãe, ela dizia que Deus ajudava os pobre. "Reza, meu filho, que Deus ajuda." Quando ficou doente, magrinha, tossia, tossia, eu pedi pra Deus curá ela. Rezei, rezei, mas ela morreu assim mesmo. Chorei pacas, seu Juiz. Fiquei sozinho, nunca tive mais ninguém, nem tia, nem madrinha, nem irmã. Pai? Não senhor. Só padrasto. Três. Tá vendo esse lanho aqui no braço, foi o Zé da Corda, tava bebão, me cintou legal! A fivela pegou bem aqui ó, só porque eu joguei terra nele porque eu tava com raiva dele porque ele tava gritando com a minha mãe. Oito, oito anos e sozinho. Invadiru o barraco e botaram eu pra fora: "sai pivete escroto, aqui não tem lugar pra você". Fui pra rua. É tão bonita a cidade na madrugada... As luzes... O silêncio... Um carro, outro carro, a sirene da poliça... Nem é comigo. Me escondo. Primeira noite drumi no banco da praça, mas era muito frio. Depois, quando achei aquela igreja grandona, me achegava na dobra da parede, junto daquela portona, deitava e me cobria com papelão de caixa. O senhor já viu o tamanho daquela portona de madeira, seu Juiz? Puta duma portona, né não? Tinha outros meninos. Meninas também. Maria de Jesus. Vê se pode!? Maria de Jesus! Lá isso é nome de menina de rua? Bonita a Maria. Dez anos. Mais velha que eu. A gente dromia junto, abraçado, pra esquentar bem. Eu gostava. A fome passava. É, fome. Pensa o quê? Cumê onde? Mendigava dia inteiro. Levava até tapa na cara, "vai trabalhar moleque". Oito anos, eu, trabaiá!? Já se viu! Desse tamanho! O Juiz acha que nóis tinha de trabaiá? Desviei do assunto? Descurpa. Tava onde? Ah! Já sei. Tava na Igreja, abraçado, eu mais a Maria de Jesus. O Meu Jesus, foi assim que dei de chamá a Maria. Meu Jesus. É que ela tinha cara de menino não, é que foi ela que me potregeu dos maior. O Chico Pinto tinha inveja d'eu mais ela. Queria drumi com ela também, mas a Maria nada que nada, só deixava eu. Eu e ela. Juntinhos. Sonhando em casá, tê filho, uma casa bonita. Sonhando, sonhando... e chorando. A noite toda, baixinho, pra ninguém ouvir. Se alguém batia na gente? Não, era só causa aquela dor apertada no peito que fazia a gente chorá. No princípio era dor de saudade. Saudade da mãe, do barraco, das brincadera de esconde-esconde nas viela do morro. Depois a saudade acabou. Veio a raiva.  Raiva dos bacana entrando na igreja, roupa bonita, olhando pra nós, olhar de desprezo...e empurrando: "sai pivete". Todo dia, nas horas da missa, era aquilo. As pessoa iam chegando, subindo as escadas, a gente corria e pedia, "dá um trocado moço? dá um trocado dona?". Quase ninguém dava. Gente ruim, num viam eu assim todo sujo, rasgado e magrela. Qué dizê, fingiam que não. Entravam direto, assim, empinado, óh, bem desse jeito. Iam rezá pra Deus. Pedir o quê s'eles tem tudo? Eu é que num tenho nada! Nem casa, nem cama, nem mãe, nem irmão, nem comida, nem roupa, nem vó, nem brinquedo, nem bola, nem bala, nem lápis , nem caderno, nem escola. Pôrra nenhuma. Um dia veio o Dunga, lata na mão, dizendo "cheira, cheira, legal, mó barato". Cheirei. Funguei fortão, bem assim, oh. Na primeira dá nervoso. Logo custuma. Fiquei parecendo voando, meio mole, o senhor sabe como é? Sabe não? É bom, pode exprimentar, tem perigo não. Aí eu peguei da lata e passei pra Maria, "cheira Meu Jesus, é bom!", mas ela cheirou não. Nunca cheirou. Qué dizê, só dessa vez agora que o senhor já sabe. Naquele domingo, as véias chegando de bolsa, e nós já muito cheirado. Deu uma corage! Gritei pro Meu Jesus: "corre comigo." Ela correu. Eu na frente. Mirei bem a véia. A bolsa da véia. E zapt! Inda bem que a alça rebentou. Corri, corri. Meu Jesus atrás dizia "pára, pára, que não vem ninguém". Mas eu não parava. O medo. A cola. A raiva. A fome. A dor. A tristeza. O choro. Saudade da mãe. Veio tudo junto. Só parei quando pensei que tava cuspindo o pulmão. Maria de Jesus sentou no mei-fio. Sentei junto. Virei a bolsa da velha de boca. Esparramou tudo. Lixo. Dinheiro nenhum. Só umas moeda. Como diabo aquela velha véve só com moeda? Tanta corrida pra nada. E nem podia voltar pra Igreja. Dormir onde? Comecei a chorar. Meu Jesus mandou eu calar a boca. Mulher já mandou o Juiz calar a boca? Já!? E o Juiz calou? Eu também. Ela disse: "Sei d'um lugar. Vamo.” Era um prédio em cunstrução, bandonado. Um monte de pivetes. Ela foi na frente, preguntando "quem é o chefe?" Contou porque nós chegou ali, "só tinha moeda" e coisa e tal,  "vocês fica ali naquele canto, mas só hoje, amanhã fora!".  Meu Jesus falou "tá bom" e eu também disse de pensamento. Naquela noite nós choramo muito, muito, mas bem, bem baixinho que foi pra não dá mole. Dia seguinte a fome acordou a gente cedo. Saimo pra rua, tudo ainda fechado. Um botequim abriu. Ficamo na porta olhando o dono lavar o chão. Aproveitamo da água com sabão, lavamo perna, braço, rosto, barriga, costa - eu lavei a costa dela, ela lavou a minha. A gente ria. O portuga também. Aí ele preguntou assim: "Os putos queirem c’fé? É só esperaire a máquina isquentaire. O pão chega já já. Sentem cá." A gente sentou. Tomamo café. Com leite. Com açúcar. Com pão. Com manteiga. Ah! Como tava bão seu Juiz! "Que Deus lhe ajude", a gente disse. Por que é que a gente sempre diz "Deus lhe ajude"? E por que ninguém diz pra gente? Será que é por isso que nós não tem felicidade como todo mundo? É, talvez, né seu Juiz? As lojas foram abrindo. As pessoas andando pela calçada. Vi o ovo bonito na sacola da dona e lembrei que devia de tá perto da Páscoa.  Perguntei pra Maria de Jesus quando é que ia de ser a Páscoa. "O Padre falou que é domingo." Que domingo? "Ora que domingo? Domingo, ora!" Meu Jesus sabia era nada. "Vamo preguntá." Preguntá pra quem, se a gente nem começa falá eles já dizem "tem trocado não”! "Então a gente pregunta pro portuga do botequim." "Então os putos não sabem? É domingo agora." Voltamos pra igreja. A turma falou que o padre dono da Igreja deu uns tapa no Zé Piche pra ele confessar, contar quem foi que roubou a bolsa da velha, mas ele não disse nada. De noite, Meu Jesus contou pra turma que ia ser Páscoa no domingo. Todo mundo ficou alegre. Alegre de quê? Alegre, seu Juiz, porque Páscoa é coisa de criança, tem chocolate as pampa, tem aqueles ovão lindão. Eu gosto pra burro de chocolate! O Juiz gosta? É fissurado que nem eu é!? Mas daí o Cabeça falou assim: "e quem é que vai dar ovo pra gente, pôrra"? Ficamo tudo calado e fumo saindo cada um pro seu canto de parede, triste, porque todo mundo sabia que ninguém ia dar ovo de Páscoa pra gente porque ninguém ia lembrar nem que nós existia. Aí o Cabeça deu aquela idéia da galera ir lá pro altar na missa do domingo de Páscoa. Ele falou assim: "A gente lá, eles não tem jeito de não vê nós. Aí eles vão saber que a gente existe." Eu ri. Achei engraçado aquela coisa dum bando de pivete, tudo mulatim, sujim, lá naquele lugar cheio de santo, de ouro, bem na frente do Deus, do padre besta e daqueles ricão com as barriga cheia de chocolate. O Meu Jesus também riu. O Zito é que deu de arregá: "olha, sei não, o padre filho de uma égua pega a gente, dá porrada, entrega nóis tudo pros hôme, mais porrada, depois FEBEM". "Ele num tem cu", disse a Maria, bem alto e fazendo assim oh! com os dedo. Aí o Zito falou: "Tá bão, eu topo, mas tem que ser todo mundo doidão." Concordamo. Mas precisava dinheiro pra comprar cola. Pedimo pra caramba. Eu dei mais de vinte golpe do chorão. Sabe qual é seu Juiz? É aquele de ficar sentado na calçada, chorando e com uma caixa vazia na mão. As mulhé falam: "Tá chorando por que menino?"  Aí eu digo que roubaram os chicletes que tava vendendo, que eu vou tê de pagá, que não tenho dinheiro... Aí elas ficam com pena, aí ... Tá bom Juiz, eu vorto pro assunto. Juntamo todo o dinheiro e demo tudo pro Cabeça. Deu pra ele arrumar 3 latas. Dava pra mais, ele é que ficou com o resto do dinheiro, mas ninguém foi besta de reclamá, nem eu, que ele é mais forte. No domingo, perto da hora da missa, foi uma cheiração danada, seu Juiz. Aí, o Cabeça na liderança, nós fumo entrando na Igreja, bem digavarinho, pelos lado, assim, o senhor sabe né Juiz? Fumo chegando, fumo subindo os degrau do altar, o padre lá, falando de Cristo, de salvar o mundo, de dar pros pobres. Dar pros pobres! Só se for porrada. E o padre não parava de falar. Aí o Cabeça foi até o último degrau, chegou bem perto daquela mesa grandona onde fica aquele copão bonito de ouro, arriou o calção e mostrou a bunda pra todo mundo. O Padre nem olhou. Teve umas mulhé que fez oh! meu Deus! mas ninguém se mexeu não. Aí me deu aquela vontade de ficar nu. Tirei a camisa, depois o carção. Segurei meu pinto e mostrei pra todo mundo, pensando assim, aqui pro’cês oh! Depois procurei Meu Jesus. Tava deitada no chão, rindo às pampa, aquele rostinho tão bonito que eu gosto, aí me deu aquela vontade e me abaixei, cheguei bem perto e beijei ela na boca. Meu Jesus deixou. Daí me pegaram, me puxaram, me bateram, me arrastaram, me xingaram, me cuspiram, me levaram. Eu mais os outros. Ontem nós vimo na televisão. Sacanagem, seu Juiz, não mostraram a cara da gente. Eu queria que todo mundo visse nós na televisão. Mas eles botaram aqueles quadradinhos, o senhor sabe como é!? bem em cima da nossa cara. Como é que vão saber que era eu? Agora quando eu contar ninguém vai acreditar! O senhor acredita, não é seu Juiz?