CULTURA INGLESA

 

        A maior floresta urbana do mundo - não medi, é o que leio nos jornais - não se faz tão grande aos olhos do carioca, embrenhado que está no labirinto das ruas de nossa desmoralizada Cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, a Floresta da Tijuca é saboreada por uns poucos grupos de cidadãos: homens e mulheres de meia-idade caminhando, na estrada das Paineiras, atrás da juventude que teima em esvair-se; outros, invejadamente jovens, seguindo trilhas em subida à Pedra da Gávea; os mais afoitos, de lá saltando de Asa Delta ou Parapente; turistas se encantando com o Rio visto do alto do Cristo Redentor; famílias invadindo, aos domingos, a área do Parque Nacional, com espetos, carne, farofa, cerveja e refrigerante, para um gostoso churrasco, à sombra das árvores e ao som dos pássaros; ciclistas em delicioso pedalar nas estradas e trilhas que serpenteiam por entre a mata, Mata Atlântica, replantada, recuperada, preservada; e nós, que de segunda a sexta, a atravessamos, indo e vindo, na rotina diária do trabalho. Somos os privilegiados das mais diferentes classes sociais. Do empresário que passa de carro, motorista particular, lendo o jornal no banco de trás, ao adolescente humilde, em pé, no ônibus, com destino ao emprego de contínuo num escritório da Praça Saens Peña. Somos os anônimos que detêm a exclusividade de atravessar, no ir-e-vir de todo dia, uma floresta. 

        Esta história se passou num desses dias quando, por volta de 9 da manhã, tomei o caminho do Alto da Boa Vista. Trajeto perigoso até ocorrer o acidente (só mudamos as coisas depois dos acidentes), alguns anos atrás, com o ônibus que perdeu o freio no final da descida, já no Itanhangá. Até então, eles desciam à toda, entortando perigosamente sobre os feixes de mola nas curvas em cotovelo, jogando as pessoas de um lado para outro do corredor, tudo para chegar mais rápido. Até o dia que um motorista foi mais cedo para o destino inevitável. Só aí alterou-se o modus operandi das linhas entre a Barra e a Tijuca. Agora existem pontos de  parada obrigatória para controle do tempo de viagem. Não aconteceram mais acidentes graves. E não fosse a floresta, as viagens agora seriam totalmente monótonas, e "sem emoção".

        Aquela manhã era de sol, céu de um azul forte, bem do jeito do céu de outono. Na subida, já encontrara as borboletas azul-vermelhas, cintilantes, voando de um lado a outro da estrada, só de manhã, só nesta época do ano, só aqui, na Floresta da Tijuca.

        Dirigia tranquilo. Confesso que a idade foi deixando meu pé direito mais leve e o ar fresco da manhã na mata corta qualquer sobra de vontade de acelerar. Hoje, os mais lentos à minha frente não incomodam, só os apressados, os neuróticos, colados na minha traseira. Ultrapassagem, só na boa. Mas tão sinuoso é o caminho na Floresta fs Tijuca que em apenas 1 ou 2 pontos se tem uma visão razoavelmente segura do movimento em sentido contrário. O mais certo é seguir em caravana, pelo menos até o Alto da Boa Vista.

        O tempo de viagem varia, dependendo de quantos coletivos encontramos pela frente. São eles que determinam a velocidade. Quantos mais, mais demorado será. E se, na subida, juntam dois ou três, um atrás do outro, o melhor é relaxar e apreciar o verde. Mas há os que perdem a cabeça com facilidade. Foi bem este o caso.

        Atente ao relato que o final é melancolicamente cômico. Desde a boate Existe Um Lugar, lá pelo meio da subida, formara-se uma fila atrás do 233 e 234, enganchados um no outro, sem deixar espaço entre eles. No começo da descida, formávamos uma grande fila onde eu era o quinto carro após os ônibus. Pelo retrovisor vinham, imediatamente atrás de mim, 3 carros sendo, o terceiro, um Fiat. Após a seqüência de 5 curvas, segue-se uma reta que me facilitou superar dois carros. O piloto do Fiat, mais afoito, passou por quatro e ficou, incomodamente, a um palmo do meu pára-choque.

        Deu pra ver, pelo retrovisor, que era um garoto novo. Não precisava ter feito o que fez porque, logo após o final da grande curva que iniciávamos, vinha o ponto de parada obrigatória para fiscalização. Mais 10 segundos e caminho livre para todos nós. Mas não, ele estava com muita energia, muita pressa e, provavelmente, muito irritado. Tentou, vinha um carro, não deu. A curva é para a esquerda e bastante larga, mais larga que o resto da pista. Eu seguia junto à faixa amarela, mais pelo meio da pista, "por dentro da curva, como se diz",  deixando um espaço à direita. Foi por ali, ultrapassando pela direita, que ele se meteu, tão espremido que os retrovisores se tocaram. Me afastei,  quase entrando na contramão. Puto, mas solidário, freei, dando espaço para que pudesse entrar na minha frente. Bem que tentou trazer o carro de volta mas a força centrífuga e uma terra solta, sequinha, na beira da pista, conspiraram em punição.  Saiu de traseira, bateu no meio-fio, capotou uma volta inteira e girou meia. Parei logo que pude, à margem da estrada. Como outros motoristas, corri para socorrê-lo. O Fiat ficara de ré pra mim, em sentido contrário. Não fosse o teto amassado, não se notava o desastre. Mas daria um bom prejuízo, além do grande susto estampado na cara pálida do índio da nossa selva de ferro e cimento. Um grupo se formou em volta do rapaz. Gente de sobra. Sobro. Posso ir. Vou saindo, dou a última olhada para trás. No vidro traseiro, um adesivo plástico de propaganda me chama a atenção: "NÃO ULTRAPASSE PELA DIREITA. VOCÊ NÃO ESTÁ EM LONDRES. EU TENHO CULTURA INGLESA."

        Como esse mundo é doido!