INDIFERENÇA

 

 

    Te vendo assim, deitada e nua, olhos fechados e pintados, a boca de baton aberta e borrada, os dentes que faltam, e os cariados, e os tortos, teus cabelos encaracolados e vermelhos, falsos, neste quarto apertado e sujo, sobre este lençol encardido, sob esta única luz amarela e fraca, pendente do teto baixo e mofado, os peitos imensos, esparramados pros lados, sobre teus braços sardentos, a tua barriga estufada, as pernas abertas, monstruosamente gordas, cheias de dobras, encharcadas pelo teu último suor, vagina à mostra, loura oxigenada, quase sem pêlos, de onde ainda escorre meu esperma; e teus pés feios, de dedos tortos, caludos, unhas mal pintadas como as de todas as putas deste resto de zona desta merda de cidade desta pôrra de país, te vendo assim, eu não sinto nada. Te olho e não te desejo como te desejei a tão poucos minutos atrás. Como pude? diabos!, querer-te tanto, enlouquecer de desejo, se nunca te amei porque nem mesmo nunca te vi jamais, a não ser hoje, na porta desta casa aos pedaços neste pedaço de rua, deste resto de zona de baixo meretrício, a sobra de um tempo que foi glorioso. Não sinto nada. Nem tampouco ódio, aquele que senti quando empurrei meu pau pra dentro de teu corpo, com raiva e força, sem ouvir teus gritos de dor e medo, te imobilizando com a força dos meus braços de estivador de um puta cais de um puta porto de uma puta cidade que esta cidade já foi. Não sinto nem mais o nojo, a vontade de vomitar que sempre me dava quando terminava de gozar dentro de vadias como tu. Não sinto mais o desprezo que me fez tapar-te a boca, servir-me do punhal e, sob teu olhar de pavor e súplica, te matar. Te olho e nem mesmo sinto pena da tua feiúra, ou da tua vida de meretriz de quinta, e miserável, e gorda, e órfã, e velha, e surrada por tantos homens, e destratada por tantas mulheres que se consideraram melhores que tu, nada sinto, nenhuma pena, por nada em fim. Só sinto teu cheiro, tua catinga que me entra pelas narinas e  me chega ao cérebro, me invade e me faz recordar, e é a mesma fedentina de todas as outras da tua mesma laia com quem já me deitei na caralha da minha vida. Como tu, eram todas: feias, burras, pobres e putas. Como tu, todas aceitaram resignadas cada porrada, cada soco na boca e no olho, cada tapa na cara e no ouvido, de tantos desgraçados de homens como eu, que lhes caíram em cima, lhes possuíram na vida. Como tu, a todas o destino deu a mesma sorte, a mesma morte, porque, como eu e como tu, nós somos os desgraçados do mundo, a escória da umanidade, atirados na sarjeta da vida. Putas, putas! O que seríamos nós sem vocês, minhas putas? Seus peitos. Suas bundas. Suas bocas. Onde jorrar nossa merdeza, nossa consciência de marginais? Onde vomitar nossos sonhos impossíveis, inalcansáveis? Onde verter nosso gozo e nossas lágrimas? Onde curar nossas dores e as feridas de nossas lutas? Como tantas, hoje foste tu o repositório da minha infeliz vida. E cumpristes tua missão como em milhares de outras noites, para tantos outros como eu, por anos e anos e anos e anos. Te olhando deste jeito, imóvel nesta cama, desgrenhada, quieta, despedida da vida, esse sangue escorrido, esse punhal encravado em teu peito, te varando o coração, eu não sinto nada. Nem amor, nem ódio, nem pena. Fiz apenas o que devia ser feito. Vou-me e te esqueço para sempre. Nem mesmo uma lembrança serás.