MAL-AMADA

 

        Não era possessiva. Ao menos não como as da novela das 8. Praticava o modelo conjugal sem-cobranças. Ele entrava e saía sem dar satisfações maiores  que um "vou ali e já volto" ou o indefinido "volto tarde, não me espere para o jantar." Não cheirava suas roupas, nem olhava suas camisas, baixarias a que não se prestava. "Mal-amadas" era sua opinião sobre mulheres que ficam catando fio de cabelo em paletós de maridos empoeirados. Pode se ver que, possessiva, ela? “nem um pingo".

        Tomá-la por  ciumenta também  não. Não que confiasse tanto  no Osmar, um tipo que não aguçava a cobiça alheia e não apresentava grandes riscos, apesar de estar ciente de que uma caninha, dois chopinhos, papo vai, mão que vem, e tudo termina em cama, mas é que jamais iria se incomodar com uma trepadinha à-toa. Aleatória. O problema era a "solução de continuidade", como dizia. "Vai que ele gosta?" Nesse ponto Maria José sentia um calafriozinho com justificada razão porque, mulher fogosa, sabia  que a seu garanhão não faltava tesão. Mas seu Raimundo, o pai viúvo, ex-macho de carteirinha, aposentado de tudo,  vaticinara que "omem que ama vai, mas  volta." Portanto, o que importava era saber do amor do Osmar.

        E aí residia o  problema: o jeitão de poucas palavras do Osmar. Palavras medidas, economizadas, como que rendessem juros e correção monetária. Quer dizer, isso perto dela, porque com os outros, se não um falador, "um bom de papo." Mas em casa não, e Zezé  se indagava "que tanto aquele omem pensava?" Dava um dedo por uns minutinhos, que fosse, lá dentro daquela cachola, só pra saber. Não se iluda, isso  vinha de muito. Nada parecido com o cara querendo saltar fora, que tá ali matutando como e quando vai dar a notícia. Não, não. Desde sempre foi assim. No casamento, o padre foi obrigado a perguntar 3 vezes: "Seu Osmar, o senhor aceita a Dona Maria José como sua legítima esposa?" E o Osmar ali, pensando.

        Maria José sofreu "um monte" durante o namoro, oras e oras ali na sala, sem uma palavra, com seu Raimundo de olho naquele cabra com  pinta de come-quieto.  Um nada de prosa. Dessa prosa de abobrinha,  sem propósito, gostosa. Só beijinhos inocentes,  mãos entrelaçadas, olhares envergonhados, um ou dois afagos nos cabelos compridos de Zezé e só. Se bem que ela reparava  o Osmar toca que toca a se ajeitar na poltrona. Digo até que se casaram tão rápido porque  Maria José não agüentava mais de tanta aflição. Aflição da caladice do Osmar atribuída à timidez e aflição de aflição mesmo, você sabe.

        Que casaram, casaram, mas daí o Osmar destravar a língua, ah! isso não. Nem de então, nem nunca. E o desespero de Maria José foi aumentando com o passar dos anos. Não pelo silêncio dele que era até bom de ouvir. Não por ele não prosear como o marido da Lurdinha, mas por  se sentir,  mais e  mais, uma mulher mal-amada  e, como tal,  igual a umas e outras.  Prova que em mais de onze anos com o Osmar, ele nunca  pronunciara o dito mágico que toda mulher, carente ou não, precisava ouvir :  eu te amo.

        Esta a questão que, depois dos trinta, já sentindo-se velha, apoquentou Maria José. O pensamento que primeiro passava assim, feito um passarinho e logo se ia, com o passar do tempo  foi querendo ficar. Ele vinha, ela enxotava. Ele vinha, ela enxotava. Ela foi se entregando. Ele foi ficando, ficando... Pronto! Se estabeleceu. Entranhou alma adentro, ecoando:  "Ele não me ama, nunca me amou!." Desamor, a explicação para ele nunca dizer "eu te amo", porque "não se diz o que não se sente", tinha certeza. E aí estava uma boa estrada com destino à desgraça.

        Durante os anos de casada,  Maria José cultivou aquela ferida com zelo de mulher  abnegada. A ferida cresceu. Invadiu corpo e mente. Se tornou visceral. Virou maluquice e, repetidamente, perguntava: "Marzinho,  você me ama?". "Amo, claro que amo". "Mas tu nunca fala?", dizia chorosa. "Jeitão é esse mesmo. Mas amo sim". E todo dia era aquela coisa. "Marzinho, tu me ama?" e o Osmar respondia igual. Agora, falar assim de chofre, cara a cara,  boca cheia "eu te amo", ah! isso o Osmar não falava não.

        Meses dessa istória e o Osmar sem perceber nada de errado - lá ia ele desconfiar que a Zezé queria ouvir um "eu te amo", assim, sem mais aquela. Até que Maria José caiu de doente. Tava de um jeito que respirar cansava. O Osmar pediu uma licença ao patrão que a concedeu em reconhecimento ao funcionário dedicado. Foi todo pra Zezé. Dos mimos ao suquinho da fruta que o desejo dela mandasse. De médico ele bem que queria chamar o seu, mas ela fez que fez exigindo ser tratada pelo Dr. Cláudio Montenegro do Canto e Melo, Ginecologista, é verdade, mas médico de vir em casa como antigamente e, afinal de contas, Dr. Canto e Melo fôra Professor Catedrático da UFRJ, o  que não é pouca coisa, e ela dava muito valor a esses títulos.

        Fraca,  era a palavra para seu estado. Sem dor nem febre nem enjôo nem tonteira nem nada. Sem manchas  ou qualquer  outro sintoma na pele. Bateria de exames realizada e resultados decepcionantemente negativos. Fraca. Era o leigo diagnóstico para  Maria José que, dia a dia,  mais certeza ganhava do mal ser incurável e  sua vida estar por menos de um lua - expressão usada por seu avô que, lembrada, a fez, ironicamente, sorrir. A idéia de morte próxima veio como inevitável, conclusiva e apavorante. Pavor não pela ideia de  morrer por  morrer, mas morrer com a vergonha de não ter sido amada pelo único omem que a viu,  tocou, possuiu. E foi esse vazio, causado pelo sentimento de insegurança, o alimento que fez crescer o desejo de vingança.

        Lá se ia mais de um mês com o Osmar sempre ali, ao lado dela. Se não ao lado, tão perto que um sussurro o trazia de pronto, solícito às vontades e necessidades da sua Zezé. Prosseguia a rotina inquietante de remédios, exames, dúvidas, novos exames, outros remédios, quando Maria José tomou sua decisão.  Coincidência ou não, nesta mesma época, ela deu de melhorar e de muito em muito. De poder se levantar sozinha a sair para fazer compras na mercearia da praça, foi um tempo de não se acreditar de tão rápido.

        Manhãzinha, galo cantando, leiteiro passando, Maria José se levantou e, dominando aquele aperto no coração que restara depois de tudo, preparou e preparado, levou o café na cama para o Osmar. Com beijos molhados acordou-o,  serviu-o e, ainda uma vez, perguntou : "Marzinho, você me ama?".  Desta vez o Osmar não respondeu porque, deliciado com aquela inesperada atenção de Zezé,  enchia a boca com um pedaço de torta, lhe beijava o seio, tomava um gole de café, acariciava as intimidades dela e  voltava pra torta. De repente uma dor pontuda, dor nova: "Dor mais esquisita!"

        Tudo muito rápido. Não demorou mais que minuto e ele estava ali, inerte, mortinho da silva, como se diz. Cabeça caída sobre o peito,  boca aberta ainda deixando escorrer sobre a camisa restos mal mastigados de torta com café. Maria José sentada à beira da cama, bandeja na mão, sussurrando baixinho: "Ele não me amava, ele não me amava."

Tudo transcorreu normalmente, da chegada do camburão à última pá de terra, mormente que nenhuma desconfiança foi suscitada, que dúvidas não aviam da causa mortis ter sido o coração.

        Antes mesmo da  missa de sétimo dia, Maria José, em pé na sala de visitas, foi auscultada pelo Dr. Canto e Melo para confirmar estar sarada do mal que nem ele, Doutor Honoris Causa, conseguira diagnosticar. Mas antes de ir-se, o velho médico, com seus 76 anos, dos quais 50 útero-vaginalmente vividos,  sentenciou: "Confesso, Dona Maria José,  ter, por um átimo,  imaginado se  não seria de mal de amor o seu padecer, mas vendo o seu Osmar - que Deus o tenha - dedicar à sua pessoa tamanha ternura, minhas dúvidas foram extirpadas pois, no seu olhar estava escrito - todos podiam ver - que nenhuma  mulher foi mais amada que a senhôra".