O Problema das Coxas

 

      O primeiro dia.

      "Pequenos acontecimentos da rotina irão trazer compensações que somarão um quadro de muita alegria."

      Mal aberto os olhos e já lia, na Tribuna de Hoje, os desígnios dos astros para aquele dia. Mas, como a maioria das vezes, frustrou-se tentando vislumbrar "acontecimentos da rotina" que trariam "muita alegria".

      Largou o jornal no chão e foi tomar o café, amargo, sem açúcar, melancólico com as lembranças da última vez em que sentira alegria. Recordou Renata, uma gatinha linda, simpática, 19 anos, divertida, boa vida, vivia de mesada do papai, praia, sombra de barraca, água de coco, aeróbica e barzinho da moda. Recordou. Ele no meio da rapaziada adolescente e riu de si mesmo. Não podia mesmo ter aguentado muito tempo. Fora o último namoro.

      João Arthur Fernandes da Costa Neto, filho de Dona Ritinha Guimarães e Doutor João Arthur Fernandes da Costa Filho, conhecido comerciante em Campos, dono de uma rede de locadoras de vídeo, agora morando no Rio de Janeiro, despesas de aluguel, condomínio e faculdade pagas pelo pai, no resto "que se arranjasse".

      Trabalhava de 9 as 5 numa loja de moda jovem na Tijuca e, à noite, estudava. Nesse dia saiu atrasado, perdido que ficara em devaneios, lembrando os pais, os irmãos, os amigos, e todas as relações que deixara para trás em busca de sua vida independente. O movimento na loja foi grande, todos queriam entrar na folia de roupa nova. Exausto, ao final do expediente, foi para o bar que a rotina dele escolhera para o chope dos fins de sexta-feira do verão do Rio, e aquela era uma sexta super, véspera de Carnaval. Uma mesinha vaga, sentou, pediu a bebida e... viu dois joelhos, seguidos de duas coxas morenas, pedaços maravilhosos de mulher. Ela falava, sorria e cantava, sentada numa das cadeiras dispostas em volta de 4 mesinhas agrupadas na calçada, em frente ao bar. "Funcionários de alguma firma", de um escritório qualquer, de um dos muitos prédios no entorno da Praça Saens Peña, que batucavam na mesa de latão e em copos e garrafas, com suas colheres e garfos, em meio a batatas-fritas, linguicinha, tragadas de Minister, cerveja, caipirinha, cinzeiros, guaraná, saleiro, paliteiro e guardanapos, uma barulheira desafinada acompanhando uma marcha antiga cantada no volume da bebedeira.

      Botou olho até dar com o dela. Sorriu, ela fingiu que não viu. De outra, desviou o olhar, mas sorriu e ele entendeu de ir adiante e não deixar escapar aquele avião nem "por sei lá o quê!" Anoiteceu e o grupo foi dispersando. Viu quando ela se despediu e foi embora, sozinha. João Arthur, de conta paga, gorjeta dada, alcançou-a no meio da praça e pediu para acompanhá-la. "Pra onde?" ela devolveu. "Pra onde o destino nos levar" e esperou causar boa impressão. Ela apenas sorriu. Pelo nem sim nem não, continuou ao lado dela, olhar perdido entre o chão e o céu, o céu e o chão, pensamento bêbado à procura de uma frase pra se equilibrar. Chegaram ao ponto final do Tijuca-Méier.

      — Qual o seu nome?

      — Analuiza. E o seu? - A resposta indicava que ela aceitara a paquera. A tensão diminuiu. Os músculos relaxaram.

      — João Arthur. Pode chamar de Joca. Você mora para os lados do Méier?

      — Bem na Dias da Cruz. Aquela turma é do meu trabalho, uma agência de propaganda aqui perto.

      O ônibus chegou enquanto ela perguntava: "E você?" Ansiedade dominada, João Arthur contou que morava em Copacabana,  sala e quarto na Toneleros, vendedor no Shopping 45 e aluno do último ano de Administração de Empresas na Cândido, centro da cidade. Quando parou para respirar, já aviam passado da roleta e se dirigiam ao último banco vago. Não fez por evitar o olhar no par de coxas posto à mostra, descarada e generosamente, pelo vestido justo que subiu quando sentou. Pudica, ela fez que puxou, mas qual o quê! que pano não é borracha, não estica. "E você, o que faz no seu emprego?" Recepcionista, ela disse, "e que recepcionista!" o diabinho soprou. Analuiza contou da agência, pequena, "umas 20 pessoas", todos muito divertidos, às vezes trabalhavam até  madrugada, ela não, o mais tarde foi uma sexta que um cliente, no final do dia, decidira publicar, no sábado, "uma oferta de arrasar" nos principais jornais do Rio e "aí foi uma loucura e só saí lá pelas 11". E João Arthur achou que trabalhar em agência de propaganda "não devia ter rotina, só novidade, todo dia". Quem sabe, por intermédio dela, não arranjava um estágio para depois de formado?

      — "O que vai fazer no Carnaval?", ele perguntou quando desciam perto da casa de Analuiza.

      — "Vou uma ou duas vezes no baile do clube, brincar no bloco de sujos e talvez vá ao desfile das escolas, de domingo pra segunda. Nada muito certo não." 

      —  "Já que é assim, amanhã você vai ao baile comigo." Jogou todas as fichas porque chegavam ao prédio onde ela morava com os pais. Não sabia se iria conseguir mais um convite, mas isso, na verdade, não era importante, como se há de ver adiante.

      Logicamente surpreendida, ela parou no meio do caminho de todos, fitou-o por segundos, avaliou suas emoções pelo rapaz bonito, mais jovem que ela, barba feita, cabelos bem cortados, roupas de grife, que não parecia vendedor e, com certeza, estava alguns degraus acima da sua condição social. E entre os esbarrões dos passantes, ouvindo "Perdão!", "Com licença!" e "Me desculpe!", concluiu que seria muito mais interessante do que aturar as grossuras dos machões de sempre do bairro, apostando em quem conseguiria acabar na cama com ela.

      No ônibus, em direção ao Centro, entorpecido de alegria, imaginando o que já classificava de "uma grande conquista",  se deixou levar, sonhando com tudo que aconteceria no sábado e nem reparou na senhora idosa, desconfortavelmente sentada ao lado dele, um rapaz que durante todo o trajeto permaneceu de olhos fixos num ponto do infinito e um sorriso idiota nos lábios.

 

      O segundo dia.

      "Momento favorável para os artistas em geral, desde os profissionais aos artistas da vida. Você está precisando de muita beleza e emoção. Não deixe de cuidar da aparência, pois isso o fará sentir-se melhor. Vista uma roupinha charmosa, colorida. Pegue o seu amor e  vá se divertir."

 

      As 8 e 15 da noite, à frente do espelho, avaliando a indumentária carnavalesca - bermuda, meias e sapatos brancos, camisa florida, colar de havaiano e quepe de oficial de marinha - já não lembrava mais do horóscopo, pois mantinha a cabeça tomada de Analuiza por todos os lados. De Copacabana ao Méier, calor de trinta e tantos graus, "seria um sufoco, mas valeria a pena, se Deus quiser!". De lá ao Clube Monte Líbano iriam de táxi. Ia lhe "custar os tubos", mas que fazer? De ônibus é que não haveria de ser. Ah! que falta fazia seu Passat! Ainda bem que a volta era garantida, com o Rogério, o amigo, namorado da Silvia, secretária de confiança no Gabinete do Prefeito, das primeiras a serem nomeadas, "uma Santa!" que, com alguns telefonemas, conseguiu mais um convite.

      Não precisou entrar no prédio de Analuiza. Da calçada avistou-a na janela da sala do apartamento do quarto andar, fazendo sinal para que esperasse, "tô descendo".  Deslumbrante, maravilhosa, "um tesão de dar em doido" foi o que viu à sua frente. Mulherão de verdade, "28, 29, 30 anos?, não sei, mais que os meus 24, isso tem!", em nada semelhante às franguinhas "diets", sem-sal, que "davam mole" na praia. Num vestido azul-esverdeado, em paetês cintilantes, colado ao corpo - lembrou da regra do jogo de gude, em criança -, "palmo e quatro dedos" acima do joelho, costas à mostra, colo dos seios insinuantes, ela surgiu "suculenta" à porta do edifício e ficou parada sobre o par de coxas que o arrebatara na véspera, esperando uma atitude qualquer de João Arthur que, em transe, pairava a alguns metros do chão.  

      O prenúncio dos prazeres daquela noite aconteceu no interior do táxi, um corcel II em bom estado e espaçoso. Pegou a  mão de Analuiza e colocou-a entre as  suas. Beijou, chupou, lambeu-lhe os dedos, um a um, calmamente que a viagem era longa. Quando chegaram ao clube passava das onze e ele já passara dos limites. Pelo retrovisor, o motorista viu os beijos que se deram, mas não viu as mãos de Analuiza tentando afastar as de João de suas coxas. Nem João desistiu e nem ela, na verdade, queria que ele desistisse. Nada mais que o jogo da sedução, o repudiar e desejar, repudiar e desejar, até  entregar-se, vencida pela paixão. Mas agora era saltar e entrar na imensa fila que se formara porque todos, telepaticamente, combinaram chegar à mesma hora.

      O salão não estava cheio, quase todos  de copo na mão, mas sóbrios, ainda não viviam suas fantasias erótico-carnavalescas. Olhavam para todos os lados. Os solteiros solitários escolhendo uma desconhecida para conquistar, e os casados acompanhados, à procura de conhecidos a quem evitar.  Mas todos, omens e mulheres, olharam para os 61 quilos e 1 metro e 71 de mulher (descontado o salto sete e meio) entrando pelo salão, em direção a uma das mesas em volta da pista de dança. Rogério e Silvia já haviam chegado e bebiam, ela um refrigerante, ele, uma cerveja, bebidas quase quentes, semeadas de confetes, em copos de plástico com a marca do fabricante.

      João Arthur fez as apresentações, sentou por último, passou em revista o salão e os camarotes. Viu artistas de novela, o empresário da moda e seus convidados, modelos e gente da política; a Rogéria, entrevistando para a TV Manchete o jogador de futebol, conquistador de fama conhecida "ele que não se meta para os lados dela"; uma loura tostada ao sol de Ipanema, estrelinha em cada bico de seio, sambando sobre a mesa perto da banda; não viu nenhum político, só muita, muita gente desviando o olhar de Analuiza quando eram flagrados por João Arthur. Ele não gostou nada nada, até lampejou uma vontade de sair fora, abandonar a multidão e fazer logo o que, há mais de 24 horas, sonhava em fazer: se regalar nas coxas de Analuiza. Mas o orgulho e a vaidade de ser invejado por estar com a mulher mais desejada do baile, falaram mais alto e ele escondeu o ciúme num cantinho qualquer do coração.   

 

      O terceiro dia.

      "Hoje você está esfuziante. As comunicações em geral estão muito favorecidas. Você está animado e leve com a pessoa amada, talvez um tanto  inconstante e indiscreto. Controle-se, mas sem bloquear a emoção."

 

      Ao completar os primeiros 15 minutos do domingo de Carnaval, esse era o horóscopo sendo impresso no papel jornal que saía célere de imensas bobinas e corria pela rotativa da Tribuna lá na Rua do Resende, mas que João Arthur não leria. O domingo de Carnaval  começava com o salão pegando fogo, antecipando outro ainda maior, o da paixão, mas este reservado para reservados quartos de hotéis, motéis, "aparts" e quitinetes quando os primeiros raios de sol empurrassem a noite pra trás do mundo. Mas agora, os corpos ferventes e suados pela cadenciada mistura de dança e canto, expeliam uma euforia contida, reprimida, sensual e nervosa, num pular contínuo no espaço apertado pra tanta gente. 

      Abraçado a Analuiza, João Arthur sambava pelo salão, ora empurrando um, ora outro, ora dando um  pisão, ora sendo pisado, mas sempre de olho à sua volta, protegendo o seu tesouro. Tentava fugir da beira do círculo porque ali se prostram os tolos, os bêbados e os machões à espreita de uma mulher pra passar a mão, berrar uma obscenidade e arranjar uma confusão. Mas Analuiza não queria ficar no meio "ali a gente só fica rodando, passinho a passinho, como pião,  sem sair do lugar" e ela gostava da correria, "da pulação" e nem ligava se lhe passassem a mão, tão rápido que era "Ah, se João Arthur descobre!" que se fosse dar trela, o sonho terminava e "isso é que não."

      Quase 5 da manhã, os quatro, abraçados, saíram para o alvorecer que, de mansinho, apagava as luzes refletidas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Andaram até o carro de Rogério, estacionado no Jardim de Alah.  No caminho, João Arthur fez o convite que não precisava ser feito e ouviu a resposta que não precisava ser dada. Silvia, que não bebia gota de álcool, sob protestos de Rogério, tomou-lhe da mão a chave do Gol GT e assumiu a direção. Felizes, cantaram "Mamãe eu quero", o refrão do Mengão, e "Me dá um dinheiro aí". João e Analuiza saltaram na Nossa Senhora de Copacabana, acenaram para os amigos que seguiram para o Leme e, um pouco trôpegos, cambalearam até o apartamento dele.

      Foi Analuiza que conseguiu abrir a porta do apartamento. Lá de dentro não há muito que contar, que não quero avexar o personagem. O porre encontrou no relaxamento a condição que faltava e se manifestou etílico, total, tão completo que João emborcou (é o melhor termo) sobre a cama. Ela o despiu, com muito esforço e carinho, que uma noite de samba já bastara para se afeiçoar ao rapaz. Fez o mesmo. Ah! se João Arthur acordasse agora, abrisse os olhos, ficava bonzinho da silva! Analuiza se aquietou, sentada na cama, peitos nus, firmes, olhando o corpo iluminado pela mistura das últimas luzes da noite com as primeiras do dia, lembrando da maneira ousada e decidida como lhe fizera o convite e, de repente, "maluquice total",  estava gostando de tudo, mais do que poderia imaginar. Sorrindo, deitou e se entregou ao sono.

      Passava das duas quando Analuiza acordou, João ao lado, sol na janela, cortina leve, quarto claro, calor, muito calor. Levantou com cuidado, achou o banheiro, fechou a porta. Necessidades vitais. No espelho se viu horrível. Abriu a porta do armarinho, procurou pela pasta dental, usou o dedo indicador como escova, bochechou, lavou o rosto. Era pouco, precisava mais. Achou o fósforo, ia acender o gás do aquecedor, "que besteira! um calor desses", abriu a torneira, destrancou a porta, meteu-se debaixo do chuveiro frio, quase uma ducha, tirou a calcinha, lavou-a com sabonete, e pôs-se a cantar, bem alto, pra acordar João Arthur.

      Não precisou de 2, 3 minutos e ele despertou, espreguiçou, sentiu na boca um gosto de merda e na cabeça oca, um turbilhão de perguntas procurando coerência e sentido para a realidade. Quando tudo se encaixou, bastou um salto para, de pau duro, invadir o banho de Analuiza. Foi que foi! Fizeram de tudo, tudinho mesmo. No box pequeno, corpos ensaboados, se escorregaram repletos de tesão. Não se falaram,  se amaram até se quedarem, pernas bambas, exaustos, ofegantes, abraçados, sobre o chão molhado.

      Foi ela que propôs: "Quero ficar o Carnaval com você." Ele não perdeu tempo. Foi ao telefone, ligou para o amigo e pediu o "bólido" emprestado. Não sem chiar, Rogério concordou, mas precisaria do carro às 6, "sem falta". E "cuidado, hein!", ele implorou. João praguejou "Vai à merda você", mas só mentalmente. Comeram esfihas com suco de laranja no bar da esquina e pegaram um ônibus até a Princesa Isabel. Andaram umas duas quadras até João Arthur parar e gritar para a janela de um segundo andar. Foi Silvia quem apareceu e jogou as chaves. O carro estava um pouco adiante, do outro lado da rua, indicou. Voaram para o Méier em busca das roupas e das "minhas coisas, ora essa!" Os pais, "melhor assim", não estavam, "hora da missa". Deixou  bilhete preso na geladeira por dois ímãs, uma arara e uma tartaruga: "Fui passar o Carnaval em Copacabana", verdade, "na casa de uma amiga", mentira, "que vocês não conhecem", meia verdade, eles ainda não conheciam João Arthur. "Não se preocupem. Beijos. Lu." De volta a Copacabana, passava das 8, e a Unidos da Ponte desfilando. Enquanto a televisão  mostrava a comissão de frente, o telefone tocou e João ouviu um "Pôrra, você é foda mesmo, tô, faz mais de 2 horas, te esperando, seu sacana!" seguido de outros palavrões mais ofensivos. 

      Decidiram ir à Marquês de Sapucaí, mesmo sem ingresso. Lá dariam um jeito e, se não dessem, se divertiam de qualquer forma. Devolveram o carro. Como Rogério ia para a Rio Branco ver o desfile de ranchos e blocos, aproveitaram a carona, depois pegavam o metrô na Cinelândia. Feito.

      Era um bocado de gente indo para a Sapucaí. De pobre com camiseta de campanha eleitoral a bacana com camiseta nº. 1. João Arthur andava rápido, puxando Analuiza que não acompanhava seu passo, "Espera, homem! Vai devagar. Pra quê essa pressa?" Arrodeou as entradas resistindo aos cambistas. Procurou por um conhecido trabalhando nas roletas de acesso. "Sempre se encontra alguém", exceto naquela noite. Foi obrigado a pagar o dobro. Ficaram no setor 3, trecho inicial da Passarela do Samba.  Analuiza via um artista famoso, gritava pelo nome, não era ouvida, largava pra lá e, Revista Domingo nas mãos, retornava ao samba enredo. "Imagina quando passar a Caprichosos" pensou João Arthur admirando "as coxas mais lindas do mundo" sambando no degrau da arquibancada. Passou a vista em redor e pegou um sujeito abraçado numa loirinha "muita da mirradinha", vidradão nas pernas de Analuiza. Encarou. O outro arregou. "Vai  olhar pras pernas da puta que o pariu", xingação de pensamento, cheia de coragem.

 

      O quarto, o quinto e o sexto dias.

      Segunda-feira :

      "Os astros continuam conspirando a seu favor. O dia será dominado por indicações favoráveis ao trato com outras pessoas. Sua sensibilidade há de indicar o caminho mais favorável a ser seguido."

 

      Terça-feira :

      "Satisfação proporcionada por pessoas próximas, com as quais você convive mais cotidianamente. Amor em dia de graça."

 

      Quarta-feira:

      As posições astrológicas indicam um dia de realizações no amor. Procure apenas meditar bem antes da tomada de decisões importantes."

 

      Os 3 dias começaram na madrugada de segunda com Analuiza extasiada com o foguetório anunciando o desfile da Caprichosos de Pilares e terminaram na quarta-feira de cinzas, Salgueiro campeã, João Arthur beijando-lhe as coxas e fazendo o pedido: "Fica comigo, traz o resto das coisas, deixo você escolher o lado da cama, lavo louça, varro casa, mas fica, fica?"

      A Tribuna de Hoje, ao contrário d'O Globo e do Jornal do Brasil, só voltava a circular na quinta-feira e, por isso, publicara o horóscopo de todos aqueles dias na edição de domingo, mas que João não lera e, portanto, ficou sem saber as suas preciosas previsões.   

      A proposta de “amaziar” com Analuiza era um tanto irresponsável, há de se convir, para quem estava absolutamente quebrado. A grana, juntada para repor o carro roubado, bem dali do meio-fio, em frente ao seu nariz,  4 meses antes, fora toda no melhor Carnaval de todos. Não se arrependia. Dias mais felizes não conhecera. Tudo perfeito. No amanhecer da segunda, sambaram atrás da última escola. Analuiza, coxas expostas, rebolando o rabo, balançando os peitos, recebeu assovios, palmas e serpentinas dos camarotes ainda  ocupados, de onde um folião abastado e de porre, espirrou a última champanhe sobre ela, fazendo sinais em convites obscenos. Analuiza sorria,  saboreando a fantasia de se sentir a passista número um da Escola Unidos da Ilusão. João Arthur experimentou os mesmos ciúmes confusos da véspera e gritou para ninguém ouvir: "Ela é minha! Ela é minha!" No embalo da multidão, por entre cerveja em lata "geladinha, só cinquentinha, pra terminar!", sanduíche, água mineral e cachorro-quente "Vai um aí, meu camarada?", andaram até a estação do metrô, na Praça Onze. A viagem foi tão cheia de carícias que teve gente de se incomodar. O João Arthur se segurando, doido pra botar as mãos, a boca, o pau, tudo, nas coxas de Analuiza. "E Botafogo que não chega!" E ainda tinha um ônibus até Copa. "Mané bus que nada que eu vou é de táxi". Chegaram, enfim. João Arthur, já tirando as calças, agarrou Analuiza por trás que se desvencilhou dando ordem: "Quero tomar banho de mar, João. É meu sonho. O sol nascendo, a praia vazia... Vamos, bota a sunga que eu vou botar o maiô." Foi pior que água fria. "Toda mulher devia ser ensinada de que isso não se faz com um homem, merda!"

      Água  morna, mar calmo, maré baixa, céu limpo, claridade vindo mansa, últimas estrelas em despedida, as luzes  dos postes que, sem porquê, insistiam em ficar mais  um pouco. Analuiza viu seu sonho, fixou tudo, pra não esquecer jamais. Dentro d'água, de costas para os prédios, mostrou os seios, brincou de passar os bicos salgados nos lábios de João Arthur que, devagar, foi puxando todo o maiô. Depois, tirou a sunga, segurou as duas peças em uma das mãos, abraçou Analuiza e, ali, publicamente, pra toda Copacabana ver, fizeram um amor sem pudor, sem medo e muito sem-vergonha.

       Repetiram o programa de segunda na terça, só não passaram em casa, pois já estavam com as roupas de banho. O amanhecer, a trepada, o gozo, o cansaço, foi tudo igual.

      A última noite de Carnaval foi só de rua. Saíram por volta das 8 e, a pé, seguiram pela Atlântica em direção ao Leme. Brincaram num bloco de travestis perto do hotel Luxor, beberam água de coco sentados num banco do calçadão, encontraram Rogério e Silvia e, juntos, aderiram ao bloco Coloridos Desbotados, sambando pelas ruas até Ipanema, passando das três. Cansados, esperaram o dia amanhecer num quiosque, bebendo cerveja, comendo um filezinho, batucando, cantando "adeus amor, eu vou partir",  sem nenhuma vontade de ir porque as forças se esvaíram em quatro noites de samba, suor, ciúme, amor e sexo.

      Terminaram a quarta-feira vendo um filme do Stallone. Analuiza assistia sem ver, pesando os prós e contras da proposta de vida em comum. Dois anos desde que largara o "safado do Alfredo." Um crápula que se mostrara um anjo na conquista e um demônio depois de trapos juntados. "Devia de ser psicopata!". Até porrada tomou. O resultado foi um canino meio bambo "que o dentista prendeu nos dentes dos lados." A perspectiva de nova desilusão brigava com a paixão nascente por João Arthur, um menino, "mas que tesão de menino!" Acabou por achar que a história não se repete e que desta vez "havia de ser diferente". E enquanto rolava o intervalo comercial, João Arthur se meteu por baixo do lençol e, começando pelos pés, veio beijando, subindo pelas pernas, uma e outra, pelas coxas, uma e outra, ... Ela ia responder, mas preferiu se entregar e gozar.

 

      Do sétimo ao ducentésimo quinto dia.

      "Período em que suas ações serão moldadas por acontecimentos com os quais (...). No amor é bom agir com cautela."

 

      A maioria das previsões nos seis meses vividos em parceria, de um jeito ou de outro, se repetiam.  A vida com Analuiza era quase perfeita não fosse o problema das coxas.

      Cada dia que passava mais João se incomodava com as roupas que, despudoradamente, expunham aquelas coxas. O tempo passando e o problema aumentando. Falar ele não falava porque Analuiza já mostrara não ser de aceitar enquadramentos. Foi encucando até ficar doente. Teve febre, caganeira, vomitou, foi ao médico que receitou calmante e uma vida menos estressante. Analuiza se preocupou e temeu o diagnóstico de cólera feito pela vizinha. Mas os dias passaram e João Arthur voltou ao normal. Quer dizer, normal normal não ficou não. Começou a refugar, ela ali, peladinha, digo, peladona, e nada, não levantava, fizesse ela o que fizesse e olha que Analuiza tinha feito de tudo! Ele apavorou, correu de volta ao médico. Não havia com o que se preocupar, era efeito do calmante, "isso acontecia com certas pessoas". Fez outra receita, o pau levantou, mas ficou uma lerdeza estranha. Até o andar se tornou meio arrastado. De mais a mais, João Arthur entristecera.

  

      O ducentésimo sexto dia.

      "Momento de ajustes na esfera afetiva. Acontecimentos inesperados nesta área. Cuidado para não se tornar autoritário ou teimoso. Relacionamentos poderão não resistir a um abalo e, inesperadamente, serem rompidos. Transformações no mundo afetivo." 

 

      Era domingo, o inverno rumo à primavera, chuva fina, peneirada, friagem penetrante, fim de tarde, debaixo das cobertas, Analuiza saturada da tristeza reinante nas últimas semanas decidiu arrancar de João Arthur a confissão por tanto tempo evitada. Perguntou, ele calou. Repetiu, ele disse "Não é nada." Insistiu, ele engrossou, mandando que se calasse. Ela não calou. Determinada, perguntou, ele emburrou. Repetiu, e foi ele que perguntou:

      — Quer mesmo saber?

      — E por que você acha que estou insistindo?

      — É problema meu.

      — Então é meu também.

      — É que eu não gosto...

      — Não gosta de que?

      — Um problema que me incomoda...

      — O que te incomoda?

      — Bem... o problema são suas coxas.

      — Minhas coxas? Que problema minhas coxas causam se você mesmo diz que é o que mais gosta?

      — É por isso mesmo.

      — Acho que você tá é ficando maluco.

      — Maluco de tanto ciúme.

      — Ciúme? Ora, essa é boa! Mas por que? Nunca lhe dei motivo!

      — É que todo mundo olha.

      — E você não se garante, homem?

      — Me garanto, mas suas roupas, chamam atenção, parecem...

      — Parecem o quê?

      — Parecem... roupa de vadia, pronto! é isso.

      — Vadiaaaaa?! Você tá me chamando de puta, seu calhorda!

      — Não! Deus me livre! São as saias e os vestidos que você usa. É o que pensam, o que dizem, eu ouço. Até no banheiro da loja, tá lá, pra quem quiser ler: "João, o corno feliz."

      — Pois quer saber de uma coisa? Você é um bosta! Adeus.

      Não quis saber dos pedidos implorados de perdão que João Arthur engatou de fazer enquanto ela juntava as coisas principais (a maioria largou pra lá, danada da vida que estava), jogou tudo na mala velha e se pôs porta afora, ele atrás. Não esperou o elevador, desceu pela escada, gritou pelo táxi, e foi-se, decepcionada, certa de que "todos os homens são iguais". Ele chorou e ensopou-se sentado no meio-fio, perdido no meio do amor e da dúvida. Odiou-a e odiou-se. Pedia perdão e não se perdoava. Algumas pessoas passaram e sentiram pena daquele pobre diabo, encharcado ali na sarjeta. Ouviu alguém dizendo "vai acabar com uma bruta pneumonia".

 

      Do ducentésimo sétimo dia ao ducentésimo vigésimo segundo dia.

      "Fase delicada. Saúde fraca. Estado emocional muito frágil. Você está muito sensível. Se predominar o baixo astral você vai ficar desanimado para tudo e para todos.  Reveja seus valores e seus sentimentos."

 

      Foi mais que uma gripe, fraco que estava, acabou no Miguel Couto com princípio de... pneumonia. Perdeu vendas e não perdeu o emprego porque patrão pode ser burro, mas nenhum é maluco de dispensar o melhor empregado por uns dias de falta. Ainda mais por motivo de doença.

      Se assustou porque morrer ele não queria. Se entregou à medicação, logo foi pra casa. Um exame de consciência e admitiu que exagerara. Uma noite, 2 caipirinhas, depois de acompanhar com seu violão o Eric Clapton cantando "Old Love", deixou o amor sair pela ponta dos dedos sobre o papel na mesa da sala. Nunca jurara nada para uma mulher. Naquela carta jurou. A Analuiza nunca confessara seu amor, mas ali, repetiu "eu te amo", contadas 23 vezes. E contrariando o conselho de amigos e companheiros ("não afrouxa, cara, segura firme") pediu, por tudo, que ela voltasse.

      Passaram 3, 4, 5, 6, 7 dias desde que colocara a carta no correio. A esperança permanecia apesar da mente, repetidamente, soprar que, por pura burrice dele, tudo acabara pra sempre. Não andava triste, apenas melancólico, consequência da autopunição. Mas, ah! se ela voltasse! Nunca mais se deixaria levar por ciúmes idiotas.

 

      O ducentésimo vigésimo terceiro dia.

      "Motivado com o entusiasmo que deriva de sua apaixonada posição diante do mundo, você, nativo deste signo, vai encontrar caminho novo a seguir e um campo vasto para ações que busquem permanência. No amor haverá surpresas."

 

      Era isso o que aconselhava, de modo vago, como sempre, o horóscopo daquela manhã cinzenta. Nada de absoluto, claro e simples como "Hoje ela volta pra você". Mas depois da ofensa que ele fizera! Voltar? Analuiza? Esquece. E ele se xingou por ter cedido à tentação de ler aquelas bobagens novamente e sentiu um tédio de matar e repreendeu-se por jogar sua esperança em previsões vagabundas de um jornal idem. Irremediavelmente descrente do jogo de palavras e definitivamente desesperançado de Analuiza o perdoar, ele, sem perceber, tomou "um caminho novo" em sua vida: por telefone, cancelou sua assinatura, jurando  nunca mais ler o horóscopo do Caderno H da Tribuna de Hoje. Pegou a agenda  de telefones e fez outras ligações.

       Em meio ao Jornal Nacional, o telefone tocou. Não ia atender, mas "e se fosse alguma coisa importante, nunca se sabe". Conheceu a voz quando ouviu "Joca? É você?" O coração disparou a 130 por minuto fácil fácil. E achou que o amor era mesmo surpreendente e ficou mudo uns centésimos de segundo, o suficiente para o coração dela, do outro lado da cidade, também acelerar.

      — Oi! Recebeu minha carta?

      — Recebi. Gostei muito, se é mesmo tudo sincero...

      — Você sabe que é. Quero você de volta.

      — Mas e o problema...?

      — Não tem mais problema. Você pode usar o que quiser.

      — E você não vai ficar com ciúme?

      — Vou.

      — Então como é que vai fazer?

      — Meu orgulho de ter você é maior que ele.

      — Você promete que não implica mais com as minhas coxas? - Foi uma pergunta cheia de dengo.

      E João Arthur, recordando todas as noites ardentes (umas até ardidas) que reviveria, prometeu que sim e pediu que ela pegasse um táxi "depressa meu amor", que ele não se agüentava mais de desejo.  Em menos de uma hora ele já estava ajoelhado, ali mesmo, no pequeno "hall",  porta aberta, abraçado às coxas quentes, salgadas, deliciosas de Analuiza, repetindo "eu te amo, eu te amo, eu te amo", enquanto ela,  tentando andar,  dizia "espera, Joca! a porta.. o vizinho vai ver.. calma Joca, mas que coisa!".  A porta fechou, um vestido subiu, uma calcinha desceu, uma camisa perdeu 7 botões, um cinto desafivelou,  uma calça arriou  levando junto uma cueca. E sobre o carpete, no estreito corredor, em frente à porta do banheiro, ele de meias, ela de sapato, ele dizendo "te amo", ela "te perdôo", ele sugando todos os centímetros de suas coxas, ela quase gozando, esqueceram de tudo. Ele do ciúme, ela da ofensa.

 

      Do ducentésimo vigésimo quarto dia em diante.

      Dia seguinte, ressuscitado de um gozo de 15 dias de abstenção, ele levantou da cama, cara amassada, olheiras, cabelo desgrenhado e cuecas, foi pegar o jornal, o primeiro da nova assinatura que fizera na véspera, por telefone. A partir daquele dia, a vida de João Arthur seria guiada pelo horóscopo do Caderno R do Jornal da Região que, naquele dia, aconselhava:

      "Conduzindo sua rotina de forma a ordenar atos e planos, você irá se posicionar de forma bastante vantajosa diante de outras pessoas. Isso significará a diferença entre o mero acerto e o êxito definitivo. Amor em fase positiva."

 

      Ele leu três, cinco, dez vezes, mas  só entendeu a última parte: "amor em fase positiva." Fechou o jornal e voltou ao quarto para admirar as coxas descobertas de Analuiza. Nuas, grossas, lisas, duras, "as coxas mais tesudas que Deus já colocou na face da Terra", com absoluta certeza. Causavam alguns problemas, é verdade, mas esse era apenas o "outro lado da moeda".