A VAGINA DO AMÉRICO

 

 

 

      A conversa entre os 3 casais rolou, divertida, das 10 da noite às 3 da madrugada de domingo. De vez em quando, só pra espicaçar, o Serjão, 44 anos, brindava "ao mais novo sócio do Clube dos Omens de Meia-Idade" e gargalhavam todos. Mas entre os tim-tins, o Américo ficava meio "caidaço" com  a consciência de que nunca mais teria trinta e alguns anos: "Quarenta! puta merda, tô na descendente!"

      Omens vividos, discutiram um bocado de assuntos. Acabaram com a inflação "é só desligar a maquininha e pronto!"; fecharam o Congresso "tudo corja, cambada de parasitas"; alfabetizaram os iletrados "basta educação, o resto o povo se vira"'; alimentaram os miseráveis "como é que o sujeito vai aprender alguma coisa de barriga vazia?"; eliminaram os assassinos e os estupradores "que esses, não tem jeito, só matando"; confinaram os ladrões a "trabalhos forçados em colônia agrícola lá em Roraima"; quebraram a cara de 3 síndicos "que todo síndico é safado"; e tudo recheado de "concordo com você", "é claro", "em gênero, número e grau" porque todas eram ideias que "tá na cara de qualquer um!", dizia o Serjão,  tão óbvias "que eu não entendo como é que essa gente não enxerga?!", replicava o Beto, o mais velho, "só não vê quem não quer", arrematava o Américo, ajeitando os óculos.

      As mulheres, a maioria das vezes, concordavam, orgulhosas das sábias opiniões de seus maridos mas, vez ou outra, estocavam o parceiro na esgrima que os casais praticam na frente dos amigos. Assim, as intervenções variavam do elogioso "eu já falei pro Serjão escrever uma carta pro Fernando Henrique" ao desmoralizante "o Beto fala, fala, mas tá sempre votando no corrupto do Benevides, amigo dele."

      — Corrupto é o caralho! - Depois da quinta dose, a grossura característica do Beto beirava a agressão. Mariana sempre esquecia esse detalhe. Calou-se para o resto da noite. 

      — E aí, Américo, quando é que o quarentão vai soltar a franga? - Era o Serjão mudando de assunto. - Você sabia que depois dos 40 todo omem passa por uma transformação?

      — Que mané transformação, sai fora!

      — Tô falando sério, rapaz. É nessa idade que a porção feminina de todos nós se revela mais explicitamente. Tá provado, é um problema de desequilíbrio ormonal inevitável. É a men-o-pausa, podes crer! Vai dizer que nunca soube de sujeito casado que depois de velho virou a mão?

      — Sai pra lá! que nunca vi não. E, além do mais, aqui dentro tem duas metades sim, mas uma é de omem e a outra também.

      — É o que você pensa. Olha o Beto. Esse jeito brabo dele é só pra esconder a bichona que tá louca pra sair.

      — Vem cá, segura aqui o bracinho dela que já tá saindo.

      E todos riram e enveredaram no papo da viadagem, transformismo e "Drag Queens". Falaram da operação da Roberta Close "me dá frio na espinha só de pensar em ter o negócio cortado", disse o Américo.  Lembraram da Rogéria "que coisa, né gente?!, uma mulher, não fosse aquele vozeirão dela.. ou dele? e nem se desconfiava" comentou Regina. Elogiaram os travestis "verdadeiros artistas", no programa do Silvio Santos "Que perfeição! Um era igualzinho à Madonna!" A dúvida transcendental de Renata que nunca "sei quem é o omem, quem é a mulher". Fofocaram sobre os artistas "Quem diria que ele era chegado, ein?!", "...fiquei chocada, um omão daqueles! Como é que pode?!", "...e dizer que foi casado com a Rúbia Noronha, aquela que fez uma prostituta na novela... como era mesmo o nome... meu Deus, tô ficando velho!" Teorizaram sobre a liberdade de opção sexual e o Beto foi curto e grosso, bem ao estilo: "Viado tem  é que morrer. De porrada.". O Serjão não perdeu a deixa e provocou:  "E se vocês descobrem que o filhão virou boneca?" Estupefação geral. "Sapo seco mangalô treis veis"; "sai pra lá"; "se é o meu boto na rua, excomungo, sem um Real no bolso"; "...quer dá? pois que dê, que o rabo não é meu, mas longe, pra não envergonhar a família." O Américo, mais sensível, pensou que devia ser um choque "dos diabos um pai descobrir que o filho é viado. O que ele faria? “Ainda bem que só tenho duas filhas." As mulheres, ah! as mulheres!, essas botaram seus viadinhos, digo, filhinhos no colo "que não vai deixar de ser meu filho só por isso", "onde já se viu! excomungar um filho do meu ventre."

      E foi-se a noite. Pagaram a conta, caminharam até o estacionamento e, durante uma boa meia  ora,  em pé, ao lado dos carros, ainda deram os arremates finais, os prós e contras da pederastia, muito mais contras que prós, vantagens e desvantagens "e pode aver vantagem em sair por aí dando a bunda?" Despediram-se. Já de dentro do seu carro, o Serjão gritou: "Olha aí, Américo, te prepara pra descobrir a mulher dentro de você!".

      — Vá se... - A mulher tapou-lhe a boca.

      Regina, cansada porque aos sábados também trabalhava, dormiu quase de imediato. Américo, que cochilara a tarde toda e bebera pouco por causa  de uma azia, coisa nova, recente, "E mal completei 40!", deitou-se, barriga pra cima, olhando pro teto, mãos atrás da cabeça, recordando as conversas daquela noite. Lembrou das soluções político-sócio-econômicas "Como se fosse fácil!" e da grosseria do Beto "Esse não toma jeito mesmo." "E o Serjão?! Ô cara sacana." inventando istórias malucas, transformação, desequilíbrio ormonal, "Onde já se viu!"

      Calor danado, que era verão, sem sopro de vento. Jogou o lençol no chão. Tirou a cueca. Deitou de volta.

      Engraçado, de repente se deu conta que não sentia o pinto. Olhou, não viu nada, só os pentelhos depois da inevitável barriguinha. Sorriu. "O bichinho tá molinho, encolidinho." Fechou os olhos. Pensou na Bruna "tesão da minha vida!" (não avia broxura que resistisse), despiu-a, desenhou na imaginação um corpo que nunca vira, abraçou-a e... nada, não surgiu nada, não subiu nada. "Coisa estranha." Botou a mão. Neca, coisa nenhuma. Nem duro, nem mole. Sentou na cama, olhou... nada. "Porra, cadê meu caralho, caralho!" Quase chorou. Não podia ser verdade. Era pesadelo, "tinha de ser." Olhou de novo. Passou a mão com mais cuidado, procurando, "Cacete! Tem um rasgo no lugar do pinto?!" Suava. Curvou-se mais. Olhou e na claridade da lua ele viu "Essa não! É uma boceta." Levantou, foi ao banheiro, acendeu a luz. Precisava ver direito. Subiu na privada,  afastou as pernas, botou as duas mãos, olhou para o espelho e viu os grandes lábios, os pequenos e o clitóris. Tudo nos conformes, uma vagina completa, sem dúvida. 

      Sentiu raiva, ódio, chorou, perguntou a Deus "Cadê meu pinto?" como se Deus  se intrometesse na genitália dos outros. Ouviu uma voz dizendo "Cuidado com a transformação. Não resista, ela é inevitável." Lembrou do Kafka, Metamorfose, o sujeito que passo a passo ia se transformando numa barata. "Essa não!" que ele até já estava acostumando com a xoxota, mas virar mulher de tudo, de uma ora pra outra,  ele não estava preparado. "E alguém está?" Precisava de um tempo pra se acostumar. Pesquisou com cuidado o seu corpo refletido. O cabelo e o rosto sem alterações. Apalpou os seios. "Não tenho seios!" era um bom sinal, deixou-o mais aliviado. "Ainda bem!" que a falta do pinto ninguém ia notar mas os seios não averia como esconder.

      Voltou pra cama e, mais calmo, analisou a situação. Pelo que deduzia, uma transformação se processara tornando-o um omem diferente. Teria que descondicionar aquele seu jeito de mijar, chegar na beira da privada, abrir a braguilha, botar o pinto pra fora, ficar mirando no pedaço de papel igiênico que ficou depois de alguém, respingar no assento do vaso e dar a tradicional sacudida. A partir de agora seriam novos ábitos. Arriar as calças, sentar no vaso, urinar sem ver no quê, enxugar a perseguida e pronto. Definitivamente era meio sem graça e não ia ser mole se acostumar com a ideia de nunca mais ficar de pau duro. E a coçadinha de ora em ora? E a ajeitada dentro da cueca pra dar mais volume? 

       Pensou em ligar para o Silvio, o médico já de tempos, amigo da família e perguntar se aquilo era normal, se existiam outros casos, se tinha remédio, operação de reversão, enfim, se informar de tudo pra saber o que fazer. Mas não àquela ora, e nem no domingo, porque o Silvio passava os fins de semana em Teresópolis. "Segunda, isso, ligo na segunda" e conto pra ele. Mas contar o quê? "Silvio, não sei como explicar... durante a noite... apareceu uma vagina no lugar do meu pênis. Como assim? Uma vagina, ora! Para ser mais claro:  Bo-ce-ta. Nunca viu?" Vê viu mas não era ginecologista, não tinha prática de mexer nessas coisas. "É, tenho de ir lá  e mostrar", decidiu. Na segunda, marcava a consulta, chegava, arriava as calças, deitava na cama, abria as pernas e mostrava "Taí ó, é ou não é um tremendo dum grelo?" Não tendo nunca visto um igual, o Silvio talvez ficasse sem saber o que dizer de pronto. Surpreso, mão no queixo, ficaria olhando, boquiaberto,  a vulva do amigo. Depois,  botava luva de borracha, olhava com lanterninha, lente de aumento, metia o dedo, depois a espátula, lá no fundo, colhendo material para análise de laboratório, tudo para um diagnóstico mais preciso. Afinal, não era um especialista na matéria. "Isso é coisa para Ginecologista." 

      Poderia contar com a descrição do médico, mas todo cuidado era pouco. Precisava manter o segredo se não "já imaginou alguém descobrir?", as pessoas iriam chamá-lo de "O Omem da Vagina". As crianças na rua, correndo atrás, rindo e gritando "Ei, moço! Mostra a xoxotinha, mostra?!" Contavam pro dono do circo que ia querer, de todo jeito, contratá-lo, atração principal, "eu, sem pica no picadeiro, pernas abertas, mostrando a aberração!". Era só o que faltava. E o pai, a mãe, os irmãos, os sobrinhos, os primos, os tios, "vovô não vai agüentar!", todos ficariam justificadamente indignados. Era até capaz de ser causa de cisão na família tão unida, parte sugerindo destêrro no sítio em Secretário, parte recomendando um especialista para uma cirurgia de, digamos, “reversão de expectativas” e os demais, resignados, aconselhando um divã de psicanalista. Uma vergonha para todos, difícil de suportar. E para ele, Américo, mais ainda.  Portanto, bico fechado.

      Olhou para o lado, Regina dormia. E a mulher? Este um problema mais imediato e mais complicado. Podia evitar por uns dias, uma ou duas semanas, alegar problemas no trabalho, até mesmo uma inexplicada impotência. "É, isso é uma boa desculpa, combina com a ida ao médico." Mas chegaria o momento da transada inadiável, ela ali, 15 dias de abstinência, esperando por um belo dum cacete e... dizer o quê? "Olha meu bem, sabe o que é, não tem mais, agora só se for assim, do jeito que duas mulheres fazem e tal e coisa". Ela não ia entender, ele teria de ser mais explícito: "Ora! mulher. Já ouviu falar de briga de aranha?" Regina ia se orrorizar, um choque, tava até vendo a reação, não aceitava uma proposta dessas nem por "Deus me acuda!" que ela sempre disse que com mulher é que não. "Mas eu não sou mulher!", tentaria argumentar, "continuo sendo o seu Ameriquinho de sempre", sem um bom e duro pau, mas isso avia de se dar um  jeito. "Quem sabe não compro um desses consolos importados?" E se nem isso ela aceitasse e, simplesmente, pedisse o divórcio ou, até mesmo, anulação de casamento? "Será que nesses casos a Igreja concedia? E o Padre, ia querer ver para crer?"

      Se viu solteiro, morando sozinho. E começou a imaginar a vida sexual de omem com vagina. Flertar com quem? Transar com quem? Se a companheira de 18 anos o rejeitava, qual  mulher toparia? "Mulheres, adeus!" foi a conclusão definitiva. Descartou logo as lésbicas também, porque, fora a xoxota,  o resto continuava omem e elas "tinham uma reputação a zelar e não iam querer ser pegas com ele por aí. Sobravam os omens, mas a idéia de transar com omem "é foda! Dura de engolir" Literalmente.  Aliás, "negócio de omens, beijo na boca, um segurando no negócio do outro, eu ein!" nunca entendeu direito. Pior, ele deitado com um macho, suado, ofegando, 70, 80, 90 quilos em cima dele "Onde já se viu!" Não viu, imaginou o cacete do outro. Aquela coisa grande vindo em sua direção. Teve medo. Podia furar suas entranhas. Leu no jornal, seção de Educação Sexual, que tinha "omem dotado de um membro com mais de 25 cm! Tá louco!"

      De repente, sentiu uma coisa grossa, grande, no meio de suas coxas. O corpo estremeceu todo numa reação de repúdio. Gritou "Não!" e foi com as mãos  afastar, evitar o estupro. Acordou assustado. Abriu os olhos, a cabeça confusa, o coração batendo acelerado, a respiração ofegante. Deu-se conta. O dia amanhecia. Calor. Suava. Dormira mal. Um pesadelo. Regina, corpo colado ao seu, deitada de bruços e do jeito que ela gostava: com o braço no meio das pernas dele.  "Puta, que alivio!" e antes de voltar a dormir, praguejou: "Serjão, você ainda me paga!".