VELHO E NU

 

A minha  história não é plágio de Fernando Sabino que não sou besta de receber um processo, se não pela cópia, pela ousadia. Um homem nu na frente de outras pessoas não é novidade. E quem nunca se viu nu, procurando um lugar pra se esconder dentro de um pesadelo qualquer? Aqui, pra começo de conto, tudo se passa num dia de verão dentro de um ônibus com destino a São Paulo.

      São pouco mais do meio de uma noite de março de 1971, no calor carioca de 35 graus na Estação Rodoviária Novo Rio. Recebo o troco e a passagem: plataforma de embarque da Cometa, horário de 01h03min, com destino a São Paulo.

      Cursando o segundo ano de Administração de Empresas na USP dos canhões de 69, de quinze em quinze dias, passava o fim de semana na minha doce Petrópolis. Não tanto por saudade dos pais ou interesses financeiros óbvios, mas muito mais por uma morena de cabelos compridos e ondulados, pele branca, maçãs rosadas e braços sardentos, que conquistara no Carnaval do ano anterior. Estudando só de manhã, estagiando no CPD à tarde, saía de São Paulo na sexta final da tarde e regressava no início da madrugada de domingo pra segunda. Assim, chegava à rodoviária paulistana lá pelas 7 e ia direto para  a faculdade,  maximizando o tempo com a morena.

      Pois foi numa dessas madrugadas de domingo que aconteceu o inusitado. Nas  décadas de 50 e 60, a ligação rodoviária entre Rio e São Paulo tinha o charme dos GMC com motor Cummings da Cometa que, trabalhando em marcha lenta, pulsava como se tivesse um coração. Todos equipados com ar condicionado.  Um luxo! Ônibus de carreira com ar condicionado! Mas, veículos importados também envelhecem e, ao tempo desta istória - pela qual não mereço qualquer mérito por ser apenas o relato de um fato verídico - eles estavam sendo substituídos pelo produto nacional, obviamente, sem ar condicionado. Acredito que, pelo menos, durante uns 2 anos, os dois modelos conviveram naquele trajeto, o que assemelhava a compra da passagem à de um bilhete da Federal, pois não se sabia o que a sorte nos reservava para o horário escolhido. Naquele dia não fui premiado. Ia viajar de quentão.

      Àquela hora a rodoviária absorvia apenas o movimento para São Paulo e, mesmo assim, por pouco tempo, pois o último saía à uma e quinze e o próximo, da Expresso Brasileiro, só sairia às quatro e vinte . A madrugada é quando uma rodoviária menos se parece com uma. Somem todos aqueles ônibus entrando, manobrando, saindo e expelindo seus gases. Desaparece aquela gente apressada, se esbarrando, tortas e suadas que, aos trancos, carregam a mala pesada numa das mãos, um filho na outra, brigando nas filas dos guichês por uma poltrona que não existe mais, tentando voltar para o lugar de onde vieram. Tampouco os que chegam, recebidos em algazarra de boas-vindas pelos amigos e parentes, os mesmos a quem, naquele mesmo lugar, acenarão um adeus ao fim das férias. Foram-se todos. Sobraram uns poucos: no bar de portas de aço arriadas a meia altura, só se vê os pés descalços e as pernas do funcionário, calça dobrada, que lava o chão, freneticamente, com água e sabão; o mendigo barbado e sujo como todo mendigo, vasculhando as lixeiras à cata de uma sobra, de uma guimba; pessoas humildes aqui e ali, nordestinos, a maior parte, dormindo sentados, braços cruzados, alguns de boca aberta, cabeça pendente sobre o ombro, malas e sacolas em volta dos pés, todos à espera, uns para seguirem ao encontro do sonho, outros voltando de uma desilusão tão grande quanto aquela cidade; o guarda que vaga displicentemente pelo salão de espera, cutuca quem se deitou sobre o banco, que isso não pode, é a ordem; alguns poucos viajantes, representantes comerciais; outros, como eu, estudantes se preparando para o Brasil, país do futuro, "Ame-o ou Deixe-o";  um casal a caminho da lua-de-mel perseguido por dois ou três amigos mais chatos e muito bêbados; e ninguém com cara de turista.

      Não havia cercas, grades e roletas impedindo o acesso dos não passageiros às plataformas. O espaço ali era absolutamente democratizado, ao contrário do país. Mais tarde tudo se inverteu. O país se democratizou e, hoje, roletas e fiscais não deixam que ninguém fique perto para nos dar adeus enquanto vamos. O ônibus de uma e três da madrugada já estacionara, mas ainda fiquei lá em cima até ver o motorista se posicionar à porta, recepcionando seus passageiros, conferindo o bilhete. Sem pressa, ao contrário da vinda, na sexta, quando São Paulo inteira parecia querer viajar. Lá, sim, era uma correria desatinada pelas escadarias empanturradas, porque comprava a última passagem, no último lugar, de um horário atrasado, porque, com aquela zona toda, todos os horários saíam atrasados. 

      Desci, entreguei ao despachante minha pequena mala com as roupas costuradas por minha mãe, lavadas e passadas pelo carinho da Luzia - a empregada de anos que um dia veio e só foi embora quando a idade obrigou. Recebi o canhoto do ticket e fui  sentar no lugar marcado: poltrona 35, janela.

      Para o leitor bem acompanhar a narrativa, é importante entender a disposição das poltronas e quem as ocupou. Dia de pouco movimento, sobravam lugares. Normalmente, os bilheteiros vendiam, àqueles que viajavam sozinhos, em primeiro lugar, as poltronas ímpares, o que deixava todos folgadamente instalados em duas poltronas, como daquela vez. Sentei-me no lado direito, no último par antes do banheiro. No outro lado do corredor, poltronas 33 e 34, irá, em breve se instalar o personagem principal. No  par à minha frente (31/32), vou colocar Adriana e do outro lado do corredor (29/30), Beatriz. À frente de Adriana (27/28), vou deixar Carla e, por último, Débora, do outro lado do corredor (25/26). Não nos falamos e, portanto, são nomes fictícios e criados obedecendo a ordem alfabética para facilitar a localização. As duas últimas poltronas do lado esquerdo, em frente ao banheiro, não foram vendidas e ninguém delas se apoderou no transcorrer da viagem.

      Abri toda a janela e me aquietei vendo e ouvindo a alegria excitada de quatro jovens, entre os 17 e os 19 anos, acomodando as bagagens e se despedindo daquele pai que se prontificara a trazê-las, àquela hora, ao embarque para a viagem que, talvez, tenha sido sonhada e ansiada por muito tempo. Entre as pessoas que esperavam o último minuto para entrar no ônibus, observei um senhor, aparentando 55, 56 anos (um velho), que depois de acomodar sua bagagem de mão, forçava sua entrada no divertido grupo de jovens, com observações espirituosas até se tornar inconveniente e desagradável.

      Faltando um ou dois minutos, os abraços e beijos de despedida anunciaram a partida e todos ocuparam seus lugares no que deveria ser uma inocente, calma e segura viagem, como sempre eram todas as viagens Rio - São Paulo. Mas...

      Não sou muito chegado a surpresas e nunca fui de procurar grandes aventuras. Por isso, vendo o velho que entrou por último, falando piadinhas apimentadas para moças desacompanhadas e que não conhecia, torci o nariz antevendo uma viagem diferente. Pré-senti alguma coisa fora do lugar. Era uma voszinha avisando: cuidado! Mantive-me um observador atento. Alerta.

      A viagem começou vagarosamente, como sempre, até chegar à Via Dutra. O velho, como todo mundo,  abriu a janela, deixando entrar um vento leve que, se não refrescava, secava o suor. Mas não ficou sentado, logo se levantou e recitou versinhos anônimos sobre paixão, sexo e o que mais não lembro. Ele declamava suas quadrinhas preferidas no meio do corredor, exatamente entre os pares de poltronas das quatro meninas e olhando-as nos olhos à procura de uma que correspondesse àquela cantada despropositada de todo. Riam todas, cada vez menos, do desagradável e pornográfico atrevimento. 

      Ele fazia seu show indo e vindo pelo corredor.  Numa dessas me olhou perscrutador. Mantive-me impassível, sério, e mentalmente concluindo: "velho tarado". Foi quando tirou a camisa e colocou-a no encosto da poltrona à sua frente, onde Beatriz se instalara. Grosseiramente e de peito desnudo, reclamou do calor e  voltou às suas "gracinhas". Só que graça ninguém mais achava. Adriana, apreensiva, falou para as amigas: "Estou ficando com medo. Esse cara é maluco"! Mas Débora tranqüilizou: "Ele não pode fazer nada. Vamos dormir."

      Perdida a platéia, o show terminou. O velho voltou à sua poltrona. Ao contrário de mim, que ocupei os dois assentos, mas com o ombro encostado à janela, ele sentou na poltrona do corredor, torceu um pouco o corpo e esticou as pernas,  levantando-as  à altura da janela onde as apoiou, pelo calcanhar. Nesta posição, meio de costas para mim, percebi que mantinha o olhar para a fresta entre as duas poltronas à sua frente, por  onde divisava um pedaço do corpo de Beatriz.

      Ao passarmos por Nova Iguaçu, íamos à velocidade máxima, provocando uma ventania desagradável que me forçou a deixar a janela aberta o suficiente apenas para manter a circulação do ar. Era uma noite clara, talvez lua cheia. Exceto as cortinas das janelas, minha e daquele velho, todas as demais estavam fechadas, impedindo a entrada da luz prateada espalhada pela noite. Todos pareciam dormir. Menos eu. Menos aquele velho.

      Dormir em ônibus é complicado. É sono conturbado. Troco de posição de tempo em tempo. Naquele dia me encolhi, de costas para o encosto, fazendo o braço da poltrona de travesseiro. Nesta posição, e este detalhe é  importante, ficava com o rosto de frente para o outro lado do corredor onde estava o velho. Adormeci até chegarmos ao alto da Serra das Araras e ser acordado, provavelmente, pelo vento frio que entrava pela escancarada janela daquele velho. Foi quando, sem dúvida nenhuma, comecei a viver a experiência mais inusitada da minha tão jovem vida.

      Quando acordei - ainda bem que sem me mexer,  apenas abrindo os olhos - vi o que, quando eu conto, ninguém acredita:  na minha frente, em pé no corredor, de perfil, eu vi o velho. Nu. Peladão. Confesso que sonhei em ver muita gente nua, mas, todas, sem exceção, eram mulheres dos meus sonhos, maravilhosas, tiradas de filmes, revistas ou mesmo da vida real. Jamais um homem. De quase sessenta anos. 

      Sinceramente não reparei mas, por isso mesmo - exceto o inusitado da situação, nada mais me chamou atenção -, afirmo que além de maluco, ele era broxa. Mantive-me impávido, tão "imexível" quanto um ministro 20 anos depois. Os pensamentos buscando uma ordem que permitisse tomar alguma decisão. Ele não percebeu que eu acordara e isso me permitia observá-lo. Lentamente, apoiando as mãos no espaldar das poltronas, ele andou até ficar entre Adriana e Beatriz, parou, olhou para uma, depois para outra, retomou a caminhada até as poltronas de Carla e Débora, parou, repetiu o olhar para uma e outra, fez meia-volta, permanecendo alguns segundos parado, tornou a andar, reproduziu tudo em sentido contrário e, próximo do seu lugar, me viu, e viu que eu via, mas ignorou e foi  para o banheiro.

      Sentei-me novamente. Os poucos minutos do velho no toalete foram como um intervalo comercial. Um tempo precioso para, tanto a respiração quanto o coração, voltarem ao ritmo normal antes do caso especial ser retomado. Acabara de passar minutos de tensão. Na cabeça, surpresa, indignação, ódio, repúdio e outros sentimentos. Repassei a cena agradecendo por ninguém, ao que pareceu, estar em vigília e ver o que eu vira, pelo motorista não ter olhado pelo retrovisor interno, e, principalmente, pelas meninas estarem dormindo, se é que alguma não tivesse visto tudo e se mantido em apavorado silêncio e retesada imobilidade. Fiz uma análise do "quarto" do meu vizinho tarado. Ele avia tirado a calça e depositado sobre a camisa que, lembra?, estava à sua frente no encosto de uma das poltronas de Beatriz. A cueca e as meias estavam na poltrona perto da janela. O par de sapatos debaixo do banco. Quer dizer, ele estava nu mesmo. Completamente!

      Cumplicidade? Não! Surpresa e indecisão. Até ali só resolvera uma coisa: não ter nenhuma atitude precipitada porque as pessoas nessas coisas de sexo se descontrolam e vão direto para a agressão e, ali, podia até acabar em linchamento. Portanto, com calma, fui analisar as alternativas para  o caso do homem voltar e continuar pelado no recinto.

      Primeira. Botar o dedo ameaçador na cara do infeliz e exigir que se vestisse imediatamente. E se Adriana ou Beatriz, mais próximas, ouvissem alguma coisa? Além do mais, não sabia nada daquele sujeito. Será que estava armado? Maluco beleza ou louco perigoso? Essas eram considerações necessárias. Decidi  pensar em outras possibilidades.

      Segunda. Levantar, ir até o motorista e contar, baixinho, bem no pé do ouvido, que tinha um cara passeando nu lá no fundo. Reação prevista: o sujeito de pronto tomava um susto, enfiava o pé no freio, estacionava de qualquer maneira no acostamento, acendia as luzes, todo mundo acordava, passava a mão numa chave de roda ou algo parecido e... Alternativa abandonada.

      Terceira. Com toda a calma e tranquilidade, ir até o simpático condutor do veículo, fazer uma introdução do tipo "não olhe pra trás, não tenha nenhuma reação brusca, mas tenho um problema e preciso de sua discreta ajuda para chegar a uma solução adequada e sem violência e blá-blá-blá." Reação: imprevisível. Obrigatoriamente o ônibus teria que parar e mesmo não acendendo nenhuma luz, alguns iriam acordar e já pensou alguém ouvindo o motorista  dizer: "O senhor se vista imediatamente ou chamo a polícia"! Não, definitivamente, esta também não era uma opção segura.

      Quarta. Convencê-lo, sem estardalhaço, a parar no primeiro posto da Polícia Rodoviária e eles que resolvessem. Simples, não é? Não era não, porque, com toda certeza, o velho associaria o fato de me ver falando com o motorista à  chegada ao posto policial e perceberia o perigo. Até parar, saltar,  convencer um incrédulo e sonolento vigilante rodoviário  a verificar o fato, não haveria mais fato, digo, homem nu nenhum. Isso daria um tremendo bate-boca que só atrasaria a viagem. E ainda me prenderiam  por difamação e calúnia.

      Quinta... Ele voltou. E sentou na mesma posição. A janela que avançava por um  pedaço da poltrona de Beatriz, ainda escancarada,  o vento a  incomodar. Tudo se passou rápido. Tão rápido que não sei como ela não viu nada. Mas eu vi, e relato que, de repente, Beatriz estava ajoelhada na poltrona, de frente para o velho que, como um  raio, cobriu as partes  puxando a calça que colocara sobre a camisa no encosto à sua frente, enquanto ela, revoltada com a má educação dele, exigia que fechasse a janela,l pois a ventania era insuportável e a impedia de dormir. Ele, assustado, engoliu qualquer resposta e fechou a janela enquanto ela voltava a se deitar. Depois, mais calmo, recolocou a calça na poltrona. E voltou à sua  flácida nudez não percebida por Beatriz porque já o sabia nu da cintura para cima desde o início da viagem.

      Já me decidira por usar a primeira alternativa (eu resolver o problema sozinho), até já articulara a frase que parecia ser a mais correta, mais eficaz, para obter o resultado desejado. Só não contava com a mudança de posição dela que também se deitara com a cabeça no lado da janela, mas agora... deitara com a cabeça no braço da poltrona do corredor e, portanto, muito perto, poderia me ouvir dizer o que decidira dizer ao velho. E agora? Alguma coisa tinha que ser feita, pois se era verdade que o velho só queria se exibir, também o era de se imaginar que pretendia continuar sem calças. Resolvi dar um tempo para Beatriz pegar novamente no sono.

      Foram 10 longos e angustiantes minutos em que, me perguntando se ela já adormecera, repetia, para decorar, a frase cuidadosamente elaborada. Era preciso que falasse baixo, mas claro, firme, mas sem agredir, sem ameaças específicas, mas ameaçador. Agi. Escorreguei para a poltrona do corredor, inclinei o corpo para a esquerda, ficando a centímetros do ouvido do velho e falei: "Tem 2 minutos para colocar sua roupa." A frase era a mais sintética que pude formular. Nem mesmo usei pronome de tratamento. Voltei à minha janela com o olhar num ponto vago da escuridão que passava correndo do lado de fora.

      A reação dele me surpreendeu, apesar de ser compatível  com o que eu desejava. Repetindo por 3 vezes "Sim senhor", ele se pôs, imediata e rapidamente a se vestir.  Distraí-me pensando talvez na loucura, talvez no ridículo, talvez no  inusitado.

      "Está bom assim, senhor, está bom assim?" Novamente o velho, em pé no corredor, de frente para mim, fechando o último botão da camisa, em sua vergonha descoberta, se subjugava a um  jovem de 22 anos, seu acusador, ao qual se submetia à aprovação, forma de pedir perdão e agradecer a quem, com uma ordem, houvera lhe resgatado de um mundo insano. Resmunguei apenas um "tudo bem" e ele, para selar o reconhecimento, me estendeu a mão: "Muito obrigado." Recusei-a com brutalidade e asco. Queria que ele dormisse porque eu também precisava.

      Sete e quinze  da manhã paulistana e chegávamos ao fim de mais uma viagem, como sempre, calma e segura pelas mãos de um bom motorista da Cometa. Apenas,  desta vez,  ela não fora tão inocente.

      Como nos aviões, também ali, antes mesmo da nave rodoviária estacionar, todos de pé, com suas bagagens de mão, ansiavam o desembarque. Ao me levantar, senti o  olhar do homem pedindo o meu. Neguei. E por entre a multidão despejada pelas portas de todos os ônibus, vindos de todos os lugares a uma distância possível de se ir e vir num fim de semana, as meninas, eu e o velho tarado que ficara nu, nos perdemos em direção a nossos traçados destinos. As meninas para alguma aventura cheia de meninos jovens e bonitos, a se exibirem para elas num ritual de conquista eterno. Eu, para 15 dias de  saudade e cartas declarando o meu amor, e tentando me exibir em floreios literários para uma menina morena de rosto rosado. E aquele homem, agora vestido, pensando em sua próxima viagem, torcendo para encontrar outras meninas a quem pudesse exibir sua flácida nudez.