ENTRE A SEDUÇÃO E O ESTUPRO

 

 

Jogue a primeira pedra quem nunca subornou um guarda de trânsito; os que nunca passaram à frente de outros graças a uma propina ao sujeito certo; e quem nunca pagou uma consulta médica sem recibo. Jogue a segunda quem, ocupando um cargo com um mínimo de poder de decisão, nunca tenha aceitado um presente melhor que uma agenda ou calendário no fim de ano;  quem nunca recebeu um agrado para facilitar a vida de outro;  quem nunca recebeu "por fora" parte da venda do valor de venda de um imóvel; ou uma receita sem origem comprovada; ou quem não tem dólares no fundo da gaveta. E, por último, todos os que, argumentando defesa de legítimos interesses, nunca tenham, por algum ato, se colocado entre os extremos do indiscutivelmente correto e o flagrantemente incorreto. Em lugar de aceitar o pequeno suborno, mande o proponente cantar em outra freguesia.

 

Entre o lícito e o ilícito, está o nebuloso mundo das propostas e transgressões toleradas ou necessárias para facilitar ou, até mesmo, viabilizar a nossa vida. Entre o  jogo adolescente da sedução e o estupro violento e traumatizante, existe a cantada do chefe e a concordância da subordinada; existe o galanteador cafajeste e a mocinha sonhadora. O ídolo cotejado e a jovem carente.

 

Entre a viabilidade de uma candidatura e a apropriação do dinheiro público estão:  o sistema eleitoral brasileiro; empresas com interesses específicos em alguma decisão do governo; a população pobre que finge vender seu voto por tijolo, telha, arroz e feijão; a classe média que frequenta ou sonha com o poder municipal; e a classe rica, dominante nas esferas estadual e federal que, ou está no poder, ou à espera da sua vez de se beneficiar dele.

 

A lei, na sua concepção mais pura, é a normatização dos usos e costumes. Ao contrário, as nossas são "criadas" por políticos e burocratas que imaginam poder impor modelos sociais de gabinete na pretensiosa intenção de modificar, por imposição, as regras nas relações entre os cidadãos. Mas sempre, e nesse caso específico, o que vigora são os usos e costumes estabelecidos por 500 anos de história política colonialista, usurpadora e paternalista. Isto posto, sobrou um indivíduo que se auto definiu como incapaz de participar da gestão de sua comunidade, preferindo eleger uma elite a quem delega essa desagradável tarefa. E, se políticos rápidamente enriquecem, que fechemos os olhos se não ninguém mais vai querer assumir uma roubada dessas.   

 

Portanto, não se venha querer punir o chefe que propôs a troca que foi aceita. Quem  não quer se corromper, não se corrompe, é simples. Em vez de ir pra cama, que vá à delegacia de polícia. A desculpa de ter sido obrigada pela ameaça de perda do emprego é cretina e só está a serviço de aliviar uma consciência mais que pesada. Transfira isso para o campo político e veja como é incomodamente verdadeiro este fato.

 

Não se pode procurar agressor onde não há agredido. É cristalino que só pode ser acusador quem, do mesmo delito, não possa ser acusado. E, na vida política brasileira, só não transgrediu a lei elitoral quem nunca se candidatou a cargo público, por mais que queiram posar de bons moços os políticos de nossas esquerdas mais à esquerda. Assuma-se que a prática social ilegal foi a única saída para viabilizar o processo democrático sob uma legislação que o proíbe, e atenhamo-nos ao objetivo da CPI (investigar desvio de verba do orçamento) ou isso não vai acabar bem, nem para a democracia, nem para o cidadão já mergulhado numa recessão idiota. Porque de depoimento em depoimento, de empreiteira em empreteira, de lista em lista, de conta bancária em conta bancária, estaremos todos, de uma forma ou de outra,  envolvidos numa grande barafunda que mistura sedutores e estupradores, todos numa mesma panela que, de tão grande,  impossível de ser levada ao fogo.

 

Para o bem da Nação, hipocrisias fora, defina-se  uma data improrrogável para o término das investigações, recomende-se cassações e consequentes inelegibilidades; acabe-se com as dotações sociais e outros pontos fracos da mecânica orçamentária; elabore-se e vote-se uma lei eleitoral onde tudo seja transparente, o lícito esteja explicitado e o ilícito tipificado, mas que torne possível, a qualquer cidadão, chegar honestamente a ocupar um cargo eletivo; por fim, auto dissolva-se o Congresso, convoque-se, de imediato, eleições para a câmara e o senado, todos com poderes para, imediatamente após a posse, proceder à revisão constitucional. Tudo como manda o figurino da constituição vigente e a ética de quem não está interessado no poder, mas em abrir caminho para um Brasil melhor.

 

Entre a sedução e o estupro existem milhões de impotentes, castrados de seus empregos ou sub-empregos, desnutridos, doentes e, rigorosamente, ignorados pelo poder e que acompanham, ao vivo e em cores, um espetáculo com todas as características de programa de humor negro e final imprevisível. É irresponsável levar alguém à beira do precipício só para verificar se ele tem ou não ímpetos suicidas. Se tiver, ele pode muito bem aproveitar a ocasião e mergulhar no vazio.