LIBERAR PARA NOS LIBERTAR!

 

 

"O Presidente da República (...) decreta o fim da ilegalidade do consumo de drogas e atribui ao Ministério da Saúde a responsabilidade pela venda de substâncias consideradas ilegais. Caberá, ainda, a este Ministério, através de convênios com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, implantar e coordenar o funcionamento de postos de atendimento a consumidores de drogas com a finalidade de controlar a distribuição das substâncias e dar tratamento àqueles que o desejarem. Revogam-se as disposições em contrário."

 

Bastaria um decreto simples assim.

 

Ao Estado cabe zelar pelo bem-comum. Proteger a vida. Garantir o direito de ir e vir. Promover justiça sem distinção de etnia, idade, sexo, religião, profissão e renda. Fornecer educação fundamental de qualidade e condições para que todos possam adquirir o nível de instrução que o país precisa e exige de cada indivíduo.

 

Ao Estado cabe incentivar a cidadania, a prática do cidadão em exigir seus direitos pelos tributos que paga, mesmo que tributo não pague por estar excluído ou à beira da exclusão. Ao Estado não cabe proteger o cidadão de si mesmo. Ao Estado cabe acolher aqueles que, por incapacidades biológicas, físicas ou psíquicas, se torna um desajustado social, não conseguindo realizar o que dele a sociedade (nós) exige.

 

Ao Estado cabe implantar estruturas de prestação de serviço em todas as áreas, em todos os níveis, suficientes para atender as demandas da população de modo a eliminar as dificuldades que motivam e justificam a corrupção.

 

Ao Estado cabe fazer tudo o que precise ser feito para que todo cidadão em idade produtiva encontre, num prazo razoável, oportunidade de trabalho e consequente renda.

 

Ao Estado não cabe invadir comunidades sem as mínimas condições de urbanidade resultado de sua própria incompetência gerencial. Ao Estado não cabe equipar agentes em helicópteros com metralhadoras atirando sobre a cabeça de cidadãos honestos na pretensão ridícula de acertar o invisível bandido.

 

Estamos todos fartos. Impotentes. Angustiados. Apavorados. Revoltados. Presos em nossas próprias casas. Queremos resgatar direitos básicos. Precisamos nos libertar deste medo constante que nos acompanha o tempo todo.

 

Chega de hipocrisia. Chega de argumentos que protegem facínoras e deixam psicopatas ao amparo da lei. A proteção ao menor é óbvia, mas do menor que está na escola, não do que está fazendo carreira para chefe de tráfico.

 

Legalizando a venda de drogas, continuaremos com os mesmos drogados de sempre. Nem mais, nem menos. Não é a liberdade do consumo que me faz consumir. Qualquer pai e mãe sabe que é exatamente o proibido que nos atraiu no passado, atrai nossos filhos no presente e atrairá nossos netos no futuro. Precisamos interromper este ciclo louco, insano. Precisamos, no mínimo, realizar uma outra experiência que nos venha servir de referencial comparativo. Dependentes de droga, se tratados, têm boas chances de recuperação. Psicopatas assassinos, definitivamente não.

 

Existem mais de 300 mil mandados de prisão não cumpridos. As cadeias estão superlotadas. O sistema prisional reconhecidamente falido. O submundo organizado da criminalidade comanda, de dentro dos presídios, ataques em massa. Policiais, civis e militares, trocam o servir o cidadão para se servir do cidadão, se organizando em milícias sob o falso argumento da proteção à comunidade contra o tráfico.

 

Acabe-se com a necessidade do tráfico e tudo isto se acaba. Não sei o que vamos ter depois, isto vamos ver... depois. Nós já sabemos o que não queremos hoje. Vamos ter que pagar, sim, um preço para construir alguma coisa melhor que isto. Por que mudar é tão difícil mesmo quando estamos tão amedrontados e ameaçados? Estamos, ou apenas ainda continuamos a acreditar que isso só acontece e só acontecerá com os outros?

 

A distribuição da droga pelo Estado porá fim ao contrabando e, consequentemente, à luta pelo controle do tráfico. Será o fim da arregimentação de jovens carentes com promessa de riqueza e ameaça de morte a quem se recusa, morte que virá, de qualquer forma, antes dos 20 anos se não lhe forem dadas alternativas. É a crueldade vivida no ambiente do tráfico, que mata, mutila, decepa, surra aquele que bobeia, ou trai, ou não dá conta do mandado. Será o fim das balas perdidas que atingiram mais de 170 pessoas em 2006, entre elas a que atingiu, recentemente, absurdo extremo, o caixão com o corpo da babá Clenilda da Silva que estava sendo velado no cemitério.

 

Não concordar é um direito inalienável. Mas oferecer alternativa é uma obrigação. Do contrário você fica sendo apenas um cara "do contra". Por isto deixo um fato para quem ainda tem dúvida: apenas 1,7% dos crimes vão a julgamento. Repito, 1,7%! 98,3% dos crimes não são punidos. Acabar com tráfico é, no mínimo, poder redirecionar um volume monstruoso de recursos para que a justiça possa funcionar.

 

Liberar para nos libertar! Este é o grito de guerra a favor do cidadão e contra o inimigo em que se tornou o inerte Estado brasileiro. É de desespero, sim, mas é muito mais um grito de esperança.

 

P.S.: Não atribua qualquer originalidade ou ousadia à proposta apresentada. Jean-Jacques Rousseuau, em meados do século XVIII, dizia(*):

"Pergunta-me se eu gostaria que o vício se mostrasse a descoberto. Claro que eu gostaria. A confiança e a estima renascerian entre os bons, aprenderíamos a desconfiar dos maus e com isso a sociedade ficaria mais segura. Prefiro que meu inimigo me ataque de armas na mão a que venha traiçoeiramente ferir-me por trás. (...) Mas será a hipocrisia uma homenagem que o vício presta à virtude? (...) Não, cobrir a sua maldade com o perigoso manto da hipocrisia não é honrar a virtude, é ultrajá-la profanando-lhe as insígnias; é acrescentar a covardia e a trapaça a todos os outros vícios, é impedir em definitivo a si próprio qualquer volta à probidade."

 

Mais adiante, acrescenta:

 

"Não há mais do que um passo do saber à ignorância, e a alternância de um para a outra é frequente entre as nações; mas nunca se viu um povo, uma vez corrompido, voltar à virtude."

 

(*) Em "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens", editora Martins Fontes, 2005.