EXTRATO DE: CONTRA O FANATISMO

Autor: Amós Oz

Ed. Ediouro 2002/2004

Reprodução de 3 conferências proferidas em janeiro de 2002, na Alemanha

 

 

PRIMEIRA CONFERÊNCIA – Como curar um fanático?

 

Esta é uma batalha entre fanáticos, entre aqueles que acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios e nós, os demais, que acreditam que a vida é um fim em si, não apenas um significado.

 

A crise atual no mundo (...) diz respeito à reivindicação típica dos fanáticos: se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos.

 

O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana (...)

 

Há um transtorno mental reconhecido, uma doença mental designada “síndrome de Jerusalém”: as pessoas vão para Jerusalém, inalam o maravilhoso ar transparente da montanha e, em seguida, repentinamente, inflamam-se e põem fogo numa mesquita, numa igreja ou numa sinagoga.

 

Os participantes [dos comícios nas filas de ônibus], ao mesmo tempo que discutem política e teologia, o bem e o mal, tentam, entretanto, abrir caminho, às cotoveladas, para chegar nos primeiros lugares da fila. Todo mundo grita, ninguém escuta, jamais.

 

A única maneira de repelir o desespero é gerar e disseminar esperança [definição perfeita para o papel das religiões].

 

Defendo a ideia de que somente os moderados de cada sociedade são capazes de conter os fundamentalistas.

 

A traição não é o contrário do amor, é uma de suas muitas opções. Penso que traidor é aquele que muda aos olhos dos que não podem mudar, não mudariam, odeiam a mudança e não podem conceber a mudança, com exceção de que sempre querem mudar você. (...) traidor, aos olhos do fanático, é qualquer pessoa que muda.

 

(...) a semente do fanatismo sempre brota ao se adotar uma atitude de superioridade moral (...)

 

[A história de Sammy Michael, terminando com uma acusação do motorista de que ele “era um homem muito cruel”] me dá, às vezes, alguma esperança, na verdade uma esperança limitada, de que injetar alguma imaginação nas pessoas pode ajudá-las, talvez, a reduzir o fanático que carregam dentro de si e a sentir-se incômodas. Não é um remédio rápido, não é uma cura rápida, mas pode ajudar.

 

A felicidade duradoura, é, na verdade, um oximoro [relacionar numa mesma expressão ou locução palavras que exprimem conceitos contrários]. Pode ser pontual ou prolongada, mas a felicidade eterna não é felicidade, da mesma forma que um orgasmo eterno não é, em absoluto, um orgasmo.

 

O fanático é uma criatura bastante generosa. É um grande altruísta. Frequentemente, o fanático está mais interessado em você do que nele próprio. Ele quer salvar sua alma, quer redimi-lo, quer libertá-lo do pecado, do erro, do fumo, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares ou cura-lo de seus hábitos de bebida ou de voto. O fanático importa-se muito com você, ele está sempre ou se atirando no seu pescoço, porque o amam de verdade, ou apertando sua garganta, caso você prove ser irrecuperável. E, de qualquer modo, falando topograficamente, atirar-se no pescoço de alguém ou apertar sua garganta é quase o mesmo gesto.

 

Bin Laden essencialmente os ama. O 11 de setembro foi um empreendimento de amor. Ele o fez para o bem de vocês, ele quer mudá-los, redimi-los.

 

O fanatismo, creio, começa em casa. Começa, precisamente, com a urgência muito comum de mudar um parente querido para o próprio bem dele. (...) “você tem que mudar, tem que ver as coisas do meu modo, ou esse casamento não vai dar certo”.

 

A batalha entre judeus israelenses e os árabes palestino (...) é, essencialmente, nada além de um conflito territorial relativo à questão dolorosa: “de quem é a terra?”

 

O fanático nunca está mais feliz ou mais satisfeito no final, ou ele está morto ou torna-se uma piada.

 

“Onde temos razão não podem crescer flores.” – Yehuda Amichai, poeta israelense.

 

Nunca vi na minha vida um fanático com senso de humor, nem vi uma pessoa com senso de humor tornar-se fanática, a menos que tenha perdido o senso de humor.

 

Quanto mais você tem razão, mais engraçado fica. E, por este motivo, você pode ser um israelense cheio de razão ou um palestino cheio de razão, ou qualquer coisa cheia de razão, mas, enquanto você tiver senso de  humor, pode ficar parcialmente imune ao fanatismo.

 

Não posso deixar de pensar com muita frequência que, com uma ligeira mudança em meus genes, ou nas circunstâncias de meus pais, eu poderia (...) ser um de meus inimigos. Imaginar isto é sempre uma prática útil.

 

[a avó de Amós, ao explicar a diferença entre judeus e cristão sobre o Messias, se ele está por vir e já ter vindo, respectivamente, disse que] “entre o dia de hoje e esse momento” [da prova definitiva] “apenas viva e deixe viver.”

 

Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, (...) mas eu humildemente ouso acrescentar isto: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, metade ligado à terra firme, metade contemplando o oceano.

 

SEGUNDA CONFERÊNCIA: Israel e Palestina: Entre o certo e o errado

 

O conflito palestino-israelense não uma luta entre o bem e o mal. Vejo-o, antes,como uma tragédia, no sentido antigo e mais preciso da palavra “tragédia”: um choque entre certo e certo, entre uma reivindicação muito poderosa, muito profunda, muito convincente, e uma outra reivindicação muito diferente, mas não menos convincente, não menos poderosa, não menos humana.

 

Quando meu pai era menino, na Polônia, as ruas da Europa estavam cobertas de pichações “Judeus, vão para a Palestina”. (...) Quando meu pai voltou, em visita à Europa, cinquenta anos mais tarde, os muros estavam cobertos de pichações “Judeus, saiam da Palestina”.

 

Não acho que o amor seja a virtude pela qual resolvemos problemas internacionais. Precisamos de outras virtudes. Precisamos de um senso de justiça, mas precisamos também de senso comum, de imaginação, uma capacidade profunda de imaginar o outro, às vezes de nos colocarmos na pele do outro.

 

“Uma boa cerca faz bons vizinhos.” – Robert Frost, poeta

 

 

TERCEIRA CONFERÊNCIA – O antídoto da imaginação.

 

[contando como se tornou escritor] Meus pais costumavam ir encontrar seus amigos em cafés. E me levavam junto porque eu era filho único e não havia ninguém para ficar comigo em casa. Eles me diziam que tinham que ter uma conversa com seus amigos, que eu tinha que me comportar bem e, se realmente me comportasse bem, haveria sorvete para mim no final. (...) meus pais costumavam demorar-se e conversar com seus amigos durante sete dias e sete noites ininterruptos, ou assim me parecia. E eu tinha que fazer algo comigo de modo a não gritar ou enlouquecer. Então sentava ali e, como um pequeno detetive, assistia ao rebuliço do café – pessoas entrando, pessoas saindo... como um pequeno Sherlock Holmes, eu observava suas roupas, seus rosto, seus gestos, estudava seus sapatos, contemplava suas bolsas e costumava passar o tempo inventando pequenas histórias sobre aquelas pessoas.

 

A que lugar pertencemos exatamente? Talvez não pertençamos a lugar algum. Não existe resposta simples, preto no branco, para isto, nem para coisa alguma.

 

[Todos temos] uma nostalgia por lugares longínquos.

 

[Devemos nos dar conta] de que todo mundo tem uma história, mas a história  de ninguém é mais válida ou convincente do que a história da pessoa ao lado.

 

Alguém está sentado em um café em Jerusalém e há uma pessoa idosa a seu lado. Eles iniciam uma conversa, e acaba que a pessoa idosa é Deus em pessoa. Bem, o personagem não acredita nisso imediatamente, mas após alguns sinais de presságios ele se convence de que quem está sentado do outro lado da mesa é Deus. E ele tem uma pergunta para fazer a Deus, uma pergunta muito urgente, é claro. Diz: “Deus, por favor, diga-me, de uma vez por todas, quem tem a fé certa? Os católicos romanos, os protestantes, ou talvez os judeus, ou serão os muçulmanos? Quem tem a fé correta?” E Deus responde: “Para lhe dizer a verdade, meu filho, não sou religioso, nunca fui religioso, nem sequer interessado em religião.”

 

Impossível não desenvolver um sentido de relativismo, de perspectiva e um certo sentido de triste ironia sobre como o ocupado se torna o ocupante, o oprimido se torna o opressor, a vítima de ontem pode facilmente converte-se no carrasco, o quão facilmente os papeis são trocados.

 

Creio que [a necessidade de contar histórias] existe em todo ser humano, não apenas em escritores e romancistas – a necessidade de contar uma história, de imaginar o outro, de colocar-se na pele de outra pessoa, é, afinal, não apenas uma experiência ética, não apenas uma grande prova de humildade, uma boa diretriz política, mas afinal trata-se, também, de um enorme prazer.