EXTRATO DE: CULTURA E BARBÁRIE EUROPÉIAS

Autor: Edgar Morin

Ed. Bertrand Brasil – 2005/2009

 

O livro é a transcrição corrigida de 3 conferencias feitas na Biblioteca Nacional François-Miterrand, nos dias 17, 18 e 19 de maio de 2005.

 

 

I - Barbárie humana e barbárie européia

 

Como Walter Benjamin evidencio, não existe marca ou ato de civilização que não seja ao mesmo tempo um ato de barbárie.

 

Essa invenção européia, a nação, construiu-se, sobre uma primeira base de purificação religiosa.

 

É importante lembrar que a intolerância religiosa espanhola se desgovernou durante a conquista das Américas, provocando a destruição de todas as religiões pré-colombianas.

 

Foi com o surgimento do Estado-nação que o princípio da purificação religiosa ganhou considerável reforço – a tal ponto que as guerras de religião, que eclodiram no século XVI após a reforma de Lutero e Calvino, foram antes guerras civis, para apenas depois se transformarem também em guerras entre nações.

 

Tratados como o de Vestfália, instauram a religião do príncipe como a religião do Estado.

 

Nas cidades dos Paises Baixos que não se encontravam organizadas segundo o princípio de nação, a tolerância religiosa persistiu, especialmente em Amsterdã, onde era possível até não praticar nenhuma religião.

 

Até o fim do século XVIII, foi em Amsterdã que foram impressos muitos dos livros proibidos pela censura. na França.

 

Para pensadores como Renan, a “existência de uma nação é um plebiscito diário”.

 

As guerras integram [ou desintegram!], pelo ódio comum contra o inimigo, as etnias mais diversas numa comunidade patriótica.

 

O século XX inventou a monstruosidade da nação monoétnica.

 

Foi com a expansão mundial da civilização ocidental que se deu a destruição genocida da humanidade arcaica e dos povos sem Estado. Na Tasmânia, a população indígena foi dizimada....

 

A barbárie continua, no entanto é preciso destacar a resistência a essa barbaria, como no Brasil, onde foram criadas associações de luta pela proteção das populações indígenas e de seus direitos.

 

II – Os antídotos culturais europeus

 

A missão que Descartes confere à ciência: fazer do homem o mestre e dono da natureza. (...) a partir de 1970 damo-nos conta de que o controle da natureza, que é na verdade incontrolável, conduz à degradação da biosfera e, por conseguinte, à degradação da vida e das sociedades humanas.

 

Além disso, tomamos conhecimento e temos agora consciência da pequenez do planeta Terra no sistema solar, da pequenez do sistema solar na Via Láctea, da pequenez de nossa galáxia no universo.

 

Na sua segunda faceta, o humanismo está ligado ao desenvolvimento da racionalidade crítica, até mesmo autocrítica. Podemos constatar isso em Elogio da loucura, de Erasmo, em que é claro, ela aparece sob formas prudentes.

 

A Igreja se recusava a admitir que os índios da América do Sul eram humanos como os outros, e que possuíam alma: como considerá-los homens, sabendo que Jesus nunca tinha ido à América do Sul!

 

Montaigne; “O que chamamos bárbaros, são seres de outra civilização que não a nossa. Eu não acho que haja nada de bárbaro e selvagem nessa nação... senão que cada qual chama de barbárie o que não faz parte de seus costumes.”

 

Deus sive natura: Deus ou a natureza, como preferirem; não faço distinção.

 

Spinoza rejeita a idéia de povo eleito, idéia que para ele é ultrapassada; ele laiciza assim a identidade judaica...

 

No século XVIII, durante o Iluminismo, a racionalidade é sobretudo crítica e ela debruça-se principalmente sobre as religiões, consideradas a matéria de que são feitos mitos e superstições.

O marxismo ficou cego, e os próprios revolucionários, que acreditavam ter varrido com tudo na União Soviética, prepararam, sem saber, o retorno vigoroso do nacionalismo, não apenas russo, mas também armênio, usbeque, lituano. Acreditavam ter erradicado a religião, e ela voltou com força renovada. Acreditavam ter acabado para sempre com o capitalismo, ao liquidar os burgueses, e um capitalismo pior do que o da época czarista emergiu.

 

Hoje existe um território mundial, que dispõe de inúmeros meios de comunicação e de uma economia própria. Não é a globalização da economia que deve ser lamentada, mas, pelo contrário, o fato de ela não estar institucionalmente regulada. É preciso que haja uma autoridade reguladora legítima de alcance planetário. Infelizmente, todos nós sabemos em que situação se encontram as Nações Unidas e o Direito Internacional...

 

A espaçonave Terra, nau em que navega a humanidade, é impulsionada hoje em dia por 4 motores: ciência, técnica, economia e lucro, e esses motores não estão sob controle.

 

III – Pensar a barbárie no século XX

 

Lênin, em O Estado e a revolução, anuncia que as conseqüências da revolução serão o enfraquecimento e a supressão do Estado.

 

O fascismo italiano nasce das condições econômicas desastrosas do pós-guerra, mas também e sobretudo de sentimentos nacionalistas desapontados e exacerbados.

 

A grande crise de 1929 deixou desempregada grande parte da classe operária da Alemanha.

 

O sucesso econômico dos primeiros anos de poder de Hitler vai garantir-lhe enorme popularidade. Esquecemos muitas vezes esse fator que foi o sucesso econômico. Sem esta crise não teria havido o sucesso político nazista em 1933. Foram a guerra (1914-1918) e a crise que levaram Hitler ao poder. O nazismo é um produto tardio da Primeira Guerra Mundial, assim como o comunismo é seu produto imediato.

 

No meio do deserto ameaçador que é a barbárie, estamos, por enquanto, sob a relativa proteção de um oásis. Mas sabemos também que vivemos hoje em condições histórico-politico-sociais que tornam o pior sempre possível, principalmente nos períodos paroxísticos.

 

E eu repito: o pior é sempre possível.

 

Nada é irreversível, e as condições democráticas humanistas devem regenerar-se em permanência, caso contrário elas se degeneram. A democracia precisa recriar-se em permanência. Pensar a barbárie é contribuir para a regeneração do humanismo. É, portanto, a ela resistir.