EXTRATO DE: ESTRANHOS À NOSSA PORTA

Autor: Zygmunt Bauman

Ed. Zahar – 2016/2017

 

 

Paul Collier: No futuro previsível, a migração internacional não atingirá um equilíbrio: temos observado o início de um desequilíbrio de proporções épicas.

 

A ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não produzimos nem controlamos, é uma importante causa de ansiedade e medo.

 

Mixofilia: atração por ambientes diversificados e heterogêneos, anunciando experiências desconhecidas e inexploradas, e por esse motivo prometendo os prazeres da aventura e da descoberta. [principal atração da vida urbana]

 

Moxofobia: o medo provocado pelo volume irrefreável do desconhecido, inconveniente, desconcertante e incontrolável. [principal tormento do cidadão urbano]

 

Alberto Nardelli: Um em cada dois cidadãos britânicos menciona a imigração entre os problemas mais importantes que o país enfrenta.

 

Lebres "perseguidas por outros animais", e que se encontram em condições similares às da fábula de Esopo, são abundantes em nossa sociedade de animais humanos. (...) Elas vivem na miséria, humilhação e ignomínia numa sociedade pronta para rejeitá-las ao mesmo tempo que ostenta a gloria de seu inédito conforto e opulência; [nossas lebres se sentem humilhadas] em função de sua incapacidade por demais evidente de se nivelar àqueles que lhes estão acima.

 

Para os indesejáveis que suspeitam ter chegado ao fundo do poço, a descoberta de outro fundo abaixo daquele em que eles próprios foram lançados é um evento de lavar a alma, que redime sua dignidade humana e recupera o que tenha sobrado de autoestima. A chegada de uma massa de migrantes sem teto, privados de direitos humanos (...) cria a chance de um evento assim. Isso ajuda muito a explicar a coincidência da recente migração em massa com o crescente sucesso da xenofobia, do racismo e da variedade chauvinista de nacionalismos; e o sucesso eleitoral, ao mesmo tempo espantoso e inédito, de partidos e movimentos xenofóbicos, racistas e chauvinistas, e de seus belicosos lideres.

 

Slogan de Marie Le Pen: A França para os franceses!

 

Afinal, o nacionalismo lhes fornece o sonhado bote salva-vidas para sua moribunda ou já finada autoestima. (...) Ser francês é uma característica que situa seus compatriotas na mesma categoria das pessoas boas, nobres, imaculadas e poderosas situadas no topo, simultaneamente situando-os acima de estrangeiros Tb miseráveis, os sem pátria recém-chegados.

 

As sucessivas ondas de novos imigrantes são percebidas com ressentimento como "precursores de más notícias". Eles são personificações do colapso da ordem (o que quer que consideremos "a ordem": um estado de coisas em que as relações entre causas e efeitos são estáveis e, portanto, compreensíveis e previsíveis, permitindo ao que fazem parte dela saber como proceder), de uma ordem que perdeu sua força impositiva.

 

É um hábito humano - muito humano - culpar e punir os mensageiros pelo conteúdo odioso da mensagem de que são portadores - nesse caso, das enigmáticas, inescrutáveis, assustadoras e corretamente abominadas forças globais que suspeitamos serem responsáveis pelo perturbador e humilhante sentido de incerteza existencial que devasta e destrói nossa confiança, ao mesmo tempo que solapa nossas ambições, nossos sonhos e planos de vida.

 

A política da separação mútua e de manter distância com a construção de muros em vez de pontes, contentando-se com "câmaras de eco" à prova de som, em vez de linhas diretas para uma comunicação sem distorções, só leva à  desolação da desconfiança mútua, do estranhamento e da exacerbação.

 

A humanidade está em crise - e não existe outra saída para ela senão a solidariedade dos seres humanos.

 

Papa Francisco (2013):Quantos de nós, incluindo eu mesmo, perdemos nosso rumo; não prestamos mais atenção ao mundo em que vivemos; não nos importamos; não protegemos o que Deus criou para todos; e acabamos nos tornando incapazes até de cuidarmos uns dos outros! E quando a humanidade como um todo perde o seu rumo, isso resulta em tragédias como a que temos testemunhado. ... Uma pergunta deve ser feita: quem é responsável pelo sangue desses nossos irmãos e irmãs? Ninguém! Essa é a nossa resposta. Não sou eu; Não tenho nada a ver com isso. Deve ser outra pessoa, mas certamente não eu. ... Hoje, ninguém no mundo se sente responsável. Perdemos o senso de responsabilidade para com nossos irmãos e irmãs. ... A cultura do conforto, que nos faz pensar apenas em nós mesmos, nos torna insensíveis aos gritos de outras pessoas, faz-nos viver em bolhas de sabão que, embora adoráveis, carecem de substância; oferecem uma ilusão efêmera e vazia que resulta na indiferença em relação aos outros; na verdade, leva ata a globalização da indiferença. Nesse mundo globalizado, caímos na indiferença globalizada. Nós nos acostumamos ao sofrimento dos outros. Ele não me afeta. Não me diz respeito. Não é da minha conta!

 

O sentido generalizado de insegurança existencial é um fato categórico, uma genuína desgraça de nossa sociedade, que se orgulha, pela boca de seus lideres políticos, da progressiva desregulamentação dos mercados de trabalho e da "flexibilização" da mão de obra, e assim, por conseguinte, reconhecida por propagar a crescente fragilidade das posições sociais e instabilidade das identidades socialmente reconhecidas - pela expansão incontrolável das fileiras do precariado (uma nova categoria social, definida por Guy Stranding basicamente pelas areias movediças em que é obrigada a se mover).

 

Os governos não estão interessados em aliviar as ansiedades de seus cidadãos. Estão interessados, isto sim, em alimentar a ansiedade que nasce da incerteza quanto ao futuro e do constante e ubíquo sentimento de insegurança, desde que as raízes dessa insegurança possam ser ancoradas em lugares que forneçam amplas oportunidades fotográficas para os ministros tensionarem seus músculos, ao mesmo tempo que ocultam os governantes prostrados diante de uma tarefa que são fracos demais para levar a cabo.

 

Roger Cohen (colunista do New York Times): Grandes mentiras produzem grandes medos que produzem grandes ganhos para grandes magnatas.

 

David Miliband (chefe da Comissão Internacional de Resgate): O tom crescentemente hostil do debate sobre o êxodo dos sírios nos dois países ocidentais (EU e GB) apresentou uma grande ameaça à governança global. Ele conclamou os Estados Unidos a honrarem seu papel de lideres mundiais na realocação de refugiados e acuou o governo britânico de dar "uma contribuição verdadeiramente mínima" para a crise. Se os Estados Unidos se fecham, em especial aos muçulmanos, eles enviam uma terrível mensagem ao mundo islâmico e Tb à Europa. Há um efeito ondulatório - se o Ocidente se fecha, isso tem implicações muito sérias.

 

Pierre Baussand: Em vez de sucumbir a uma retórica reacionária, populista e desinformada como a das organizações de extrema direita, que igualam todos os migrantes a terroristas, nossos lideres devem (...) rejeitar as posturas do tipo "nós contra eles" e o surto de islamofobia. Isso só serve aos interesses do Daesh, que usa essas narrativas como instrumentos de recrutamento.

 

Ainda Baussand: Em vez de travar uma guerra contra o Daesh na Síria e no Iraque, as maiores armas que o Ocidente pode empregar contra o terrorismo são investimentos sociais, inclusão social e integração em nosso território.

 

Na terminologia do grande filósofo russo Mikhail  Bakhtin, todos os poderes terrenos se nutrem e prosperam remodelando o "medo  cósmico", inato e endêmico aos seres humanos - ou seja, o (...) Esse medo cósmico, fundamentalmente não místico no sentido estrito (sendo um medo diante do poder materialmente grande e indefinível), é usado por todos os sistemas religiosos para a supressão da pessoa e de sua consciência.

 

Ainda Bakthin: Nas leis trazidas por Moisés ao povo de Israel ecoavam os trovões que rolavam no alto do monte Sinai. Mas as leis manifestavam clara e abertamente o que os trovões apenas obscuramente insinuavam. Elas davam respostas para fazer cessar as perguntas.

 

Os sistemas religiosos (...) tendiam a garantir a submissão e a obediência de seus súditos prometendo (...) receitas infalíveis para obter os favores e a graça de Deus, e para aplacar Sua fúria, caso os esforços de seguir Seus mandamentos ao pé da letra se revelassem, na prática, uma tarefa árdua e onerosa demais.(...) As igrejas apresentava meticulosamente e com uma profusão de detalhes o código de conduta tendente a induzir Deus - ao mesmo tempo equipado com os poderes da maldição e da benção - a fazer exatamente isso. Agonizando sob os golpes do destino, as vitimas da ira de Deus sabiam exatamente o que tinham de fazer para obter a redenção. Se esta demorasse a chegar, eles acreditavam não estar agindo de modo dedicado o bastante - sendo assim culpados de um comportamento corrigível.

 

Como dizia Ulrich Beck, agora os indivíduos é que são encarregados da tarefa quase irrealizável de encontrar, em termos individuais, soluções para problemas socialmente produzidos.

 

Byung-Chu Han propõe que a depressão, a doença fundamental numa sociedade de performers, não é causada pelo excesso de responsabilidades e deveres, mas pelo "imperativo da performance, a nova regra da sociedade da mão de obra pós-moderna.

 

"A sociedade da performance" é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma sociedade da performance individual (...)

 

O espectro que paira sobre uma sociedade de potenciais performers por decreto é o horror de se perceber deficiente - inepto e ineficaz -, assim como o terror de seus efeitos imediatos - a perda da auto-estima e suas prováveis sequelas: rejeição, proscrição e exclusão.

 

A segunda circunstância nova é a erosão da soberania territorial das unidades políticas existentes, causada pelo fato de que o processo em curso de globalização do poder não é acompanhado por uma globalização similar da política, e assim resultando numa desarmoniosa discrepância entre os objetivos e os meios de ação efetiva.

 

Eric Hobsbawm: Em sociedades modernas, comunidades e grupos étnicos estão fadados a coexistir, apesar da retórica que sonha com o retorno a uma nação sem misturas.

 

Ainda Hobsbawm: O que alimenta essas reações defensivas, seja contra ameaças reais ou imaginarias, é a combinação de movimentos populacionais internacionais com inéditas transformações socioeconômicas. (...) Eles (os estranhos) podem ser, devem ser, culpados por todas as dificuldades, incertezas e desorientações que tantos de nós sentimos após quarenta anos das mais rápidas e profundas reviravoltas da vida humana na história escrita.

 

Ler "Nações e nacionalismo desde 1780" de Hobsbawm

 

Hoje após uma longa história de sucesso regional, o Estado-nação está nos desapontando numa escala global. (...) já estamos vivendo, gostando ou não, num planeta "cosmopolitizado", com fronteiras porosas e altamente difusas e uma interdependência universal. O que nos falta é uma consciência cosmopolita que se harmonize com nossa condição também cosmopolita. E, acrescentaria eu: também nos faltam as instituições políticas capazes de concretizá-lo.

 

As promessas podem ser fraudulentas, mas também são cativantes e atraentes. Apresentam uma visão de restaurar e readequar tudo aquilo de que um grande e crescente número de nossos contemporâneos sente falta na política atual, conhecida por sofrer de um déficit de poder cada vez maior, e que, por essa razão, demonstra sua incapacidade de evitar os danos provocados por poderes que fogem ao seu controle e ignora, assim como buscam interromper no nascedouro, todas as tentativas (embora raras e espaçadas) de políticos liberal-democratas de recuperar sua declinante autoridade.

 

O imperdoável pecado da democracia, aos olhos de um número crescente de seus supostos beneficiários, é seu fracasso em cumprir promessas e sua busca de uma desculpa para isso na fórmula "Tina" (de "There Is No Alternative"), significando "não podemos fazer de outro jeito".

 

Kwame Anthony Appiah: Na maior parte de nossa história nossos ancestrais veriam, num dia típico, apenas pessoas que eles haviam conhecido durante a maior parte de suas vidas. (...) Só nos dois últimos séculos chegamos a um ponto em que cada um de nós pode realisticamente imaginar fazer contato com qualquer outro dos demais 7 bilhões de seres humanos que habitam o planeta Terra.

 

Aproximando-se uma bifurcação no caminho de nossos possíveis futuros, um deles levando ao bem-estar cooperativo, o outro à extinção coletiva, somos ainda incapazes de elevar nossas consciências, intenções e ações à globalidade já existente - e cuja reversão é altamente improvável - de nossa independência em termos de espécie, uma condição que torna a escolha entre sobrevivência e extinção dependente de nossa capacidade de viver lado a lado, mutuamente em paz, em solidariedade e cooperação, entre estranhos que podem ou não sustentar opiniões e preferências semelhantes às nossas.

 

Como conviver - viver em paz - num planeta congestionado, que está atingindo o limite de sua capacidade de ocupação?

 

Kant: Hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo fato de estar em território alheio.

 

Kant reivindica a substituição da hostilidade pela hospitalidade.

 

Hanna Arendt: Ninguém precisava ser um nazista convicto para se adequar, e esquecer praticamente da noite para o dia, não sua condição social, mas as convicções morais que antes a acompanhavam.

 

O que está acontecendo hoje - em acentuada oposição ao espaço, em permanente expansão, da interdependência humana - é a redução daquele domínio das obrigações morais que estamos prontos a admitir, cuja responsabilidade estamos dispostos a assumir e a aceitar como o objeto de nossa atenção e ação corretiva constantes, cotidianas.

 

Ter moral significa saber a diferença entre o bem e o mal, e onde traçar a linha que os separa - bem como ser capaz de distinguir um do outro ao vê-los em ação ou ao se cogitar consumá-los.

 

[Em 2015 tínhamos mais de 200 milhões de pessoas globalmente deslocadas.]

 

Michel Agier sugere que a política migratória se destina a consolidar uma divisão entre duas grandes categorias mundiais cada vez mais reificadas: de um lado, um mundo limpo, saudável e visível; de outro, o mundo dos remanescentes residuais, sombrio, doente e invisível. (...) Ele prevê que campos não serão mais usados para manter vivos refugiados vulneráveis, mas para reunir e vigiar todos os tipos de população indesejável.

 

Fomos forçados pelos "remanescentes" a confrontar olho no olho os aspectos antes reconfortantes e tranquilizadoramente invisíveis da realidade do estado do mundo.

 

As referências às "causas originais" da migração são poucas e esparsas, sendo-lhes atribuída somente uma importância secundária.

 

Atualmente [2015] a UE oferece aos sírios a expectativa de um refúgio (viver na Alemanha), mas apenas se antes disso pagarem a um bandido e arriscarem suas vidas. Apenas 2% sucumbem a essa tentação, mas, no processo, inevitavelmente, milhares se afundam. Essa política é tão irresponsável que esta moralmente mais próxima da insensatez de uma carnificina que da virtude do resgate. Ela despeja uma fortuna sobre uns poucos, mata milhares e ignora milhões.

 

Kant acreditava que o conhecimento moral, o conhecimento do certo e do errado, é permitido a todos os seres humanos graças às faculdades racionais que todos possuem.

 

A pergunta de Kant, "como persuadir a vontade a aceitar os ditames da razão?", permanece assustadoramente sem resposta, com seu complemento ou seu corolário, já pressuposto na parábola da caverna de Platão: como "traduzir de modo convincente, em palavra e argumentos, ... evidências vistas".

 

[Estamos em] uma rota de fuga da dissonância cognitiva que surge dentro da brecha obscura e obscurecedora entre conhecimento moral e conduta  moral.

 

Estar afinado com aquilo que as pessoas (a maioria) têm o hábito de fazer foi descrito pelos filósofos como parte das características mais ou menos atemporais da condição humana, suas características antropológicas, perpétuas, talvez indeléveis.

 

De uma coisa não se pode duvidar: hoje, estão surgindo algumas circunstâncias novas, circunscritas pelo tempo, que inserem sua correlação com nossas ações (...)

 

Uma das mudanças coincidentes é que agora habitamos, de modo sem precedentes, dois mundos diferentes - o "on-line" e o "off-line" -, ainda que sejamos capazes de passar de um para outro de forma tão suave, a ponto de isso ser, na maioria dos casos, imperceptível, de vez que não há nem fronteiras demarcadas ou controles de imigração entre elas, nem agentes de segurança para verificar nossa inocência ou funcionários da imigração checando nossos vistos e passaportes.

 

Eu pertenço ao mundo off-line, enquanto o mundo on-line pertence a mim.

 

Nenhuma opção on-line é final e irreversível, nenhum defeito é irreparável, nenhum fracasso é imperdoável.

 

Um bom número de nós se verá tentado pela "grande simplificação" que o abrigo on-line oferece. Lá, dentro desse abrigo, a pessoa é salva da inevitabilidade confrontar diretamente o adversário. (...) Na "zona de conforto" resultante, só pessoas de mentalidade semelhante são admitidas, enquanto se barra a entrada daquelas que estão do lado oposto da controvérsia.

 

Pessoas solitárias na frente de um telefone, tablet ou tela de laptop, tendo apenas a presença de outros "virais", parecem pôr a razão para dormir, junto com amoral, liberando as emoções em geral controladas.

 

[Somos todos vítimas] De quê? De circunstâncias sobre as quais temos pouca ou nenhuma influência, muito menos controle. (...) Para resgatar um pouco de  dignidade e de auto-respeito, as vítimas precisam localizar, apontar e dar nome àqueles que as vitimaram; e estes precisam ter rostos reconhecíveis, capazes de serem localizados, apontados e nomeados.

 

Appiah: O modelo ao qual voltarei é o da conversa - e, em particular, daquela entre pessoas com diferentes modos de vida. O mundo está ficando mais congestionado: no próximo meio século, a população de nossa espécie, antes nômade, vai se aproximar de 9 bilhões. Dependendo das circunstâncias, conversas através das fronteiras podem ser deliciosas ou apenas irritantes: o que elas são, predominantemente, contudo, é inevitáveis.