EXTRATO DE: OS LUGARES DO MEIO

Rory Stewart

Editora Record, 2008

 

 

[Neste extrato, vou acrescentar observações e reflexões minhas. Elas estarão, como aqui, sempre entre colchetes "[]". Portanto, se não está entre colchetes, é Rory quem fala. E em itálico são palavras de outros personagens, que não atribuídas a outrem, são do imperador Babur.]

                                         

[Rory é um jornalista nascido em Hong Kong, e criado na escócia, que resolveu fazer algumas caminhadas, longas caminhadas (mais de 9 mil km), pela Ásia. Este livro conta sobre a caminhada no Afeganistão, entre as cidades de Herat e Cabul, km, em 2002. Os lugares do meio são as pequeníssimas cidades, aldeias, lugarejos pelos quais ele vai passando.]

 

[Lugares do Meio me foi dado por não sei quem, não sei quando. Arrumando minha biblioteca o peguei acidentalmente. Providencial. Como você vai ver, a narrativa nos coloca inevitavelmente em reflexão sobre culturas tão diversas da nossa, sobre a natureza humana, e mais diretamente, sobre a crueldade humana. E este é um tema que, nestes anos da segunda metade da década de 2010, vem me incomodando muito, face aos acontecimentos na Síria e seus vizinhos.]

 

Eu tinha dito ao serviço de Segurança que pretendia atravessar o Afeganistão  seguindo os passos de Babur, primeiro imperador mongol da índia, mas isso não era exatamente verdade. Resolvera caminhar pela rota central de Herat a Cabul porque era mais curta e porque o Talibã ainda resistia na principal estrada meridional.

 

O início do diário [de Babur] era tão ruim quanto eu previra. (...) Enquanto lia, no entanto, a geografia e a genealogia foram desaparecendo e surgiu uma narrativa. Babur tinha nascido em 1480 como príncipe de um reino pobre e remoto no Uzbequistão.

 

O imperador [Babur] não esconde sua origem pobre, seus defeitos, embaraços e amores não-correspondidos. Tem consciência de seus próprios comportamentos absurdos, suas ilusões e fraquezas =, sem se desculpar completamente. Orgulha-se de sua poesia, mas não de sua coragem e engenho. Mostra-esse cético em relação à autoridade e à religião, e pouco acredita no mundo ou em si mesmo.

 

[Os costumes daquela região são, para nós ocidentais, muito loucos, ou estranhos, para dizer o mínimo. Comecemos pela forma com que se cumprimentam.]

 

Finalmente entrou um soldado que disse, com a mão direita sobre o peito: "Salaam aleikim. Chetor hastid? Jan-e-shoma jur ast? Khub hastid? Sahat-e-shoma khub ast? Be khair hastid? Jur hastid? Khane kheirat ast? Zinde bashi."

Na língua dari, dialeto afegão do idioma persa, isso significa: "A paz esteja contigo. Como está? Tua alma está sã? Estás bem? Estás bem? Estás com saúde? Estás te sentindo bem? Tua casa está prosperando? Desejo-te longa vida." Ou então [isso quer dizer], simplesmente: "Olá."

 

[Reparem que ele não deixa espaço para respostas. Elas não são necessárias, ou melhor dizendo, os que estão sendo cumprimentados responderão as mesmas coisas, num mesmo ritmo.]

 

[Rory conta passagens que nos mostram o quanto as "aparências" são importantes para a hierarquização nos relacionamentos. Um exemplo:]

 

Abdul Haq manteve o rádio transistor ligado a noite inteira. Só conseguia um som alto de estática, mas isso mostrava a todos que ele possuía um rádio.

 

[E essa coisa de como eles tratam as mulheres!!!??? O medo que eles têm de ser corneados!!!!]

 

Ismail Khan [feito governador de uma região após a vitória sobre o Talibã] discordava mais do Talibã quanto à mobília do que quanto ao Islã. Acreditava há jihad e detestava a interferência de estrangeiros ateus no Afeganistão. Estimulara as mulheres a voltarem às escolas, mas achava que deviam estar  cobertas e não falar com homens que não fossem seus parentes. Estava prestes a ordenar às equipes de "vício e virtude" que patrulhassem os mercados que eu tinha visto e queimassem os DVDs. Implementara leis exigindo que as mulheres usassem lenços nas cabeças e proibindo o uso de gravata pelos homens. As mulheres que se encontrassem com homens que não fossem seus parentes podiam ser obrigadas a submeter-se a exames em hospitais a fim de verificar se tinham mantido relações sexuais recentemente.  (...) sem dúvida, ele não iria compartilhar sua visão a respeito das mulheres com a repórter da TV France 2, que não tinha coberto os cabelos louros.

 

[Tal como no cristianismo, aquele que se salva em uma desgraça qualquer, atribui sua sobrevivência a ser um ser... especial.]

 

Abdul Haq [que acompanhou Rory nos primeiros dias a título de protegê-lo, conta] - Há três anos passei por esta estrada em um jipe. Caímos dentro daquele fosso onde o menino está choramingando. As outra seis pessoas que estavam no veículo morreram, mas eu fui atirado por cima de um muro e sobrevivi, porque Deus me ama.

 

[O valor da vida humana é... nada. Se você está dentro de um círculo inclusivo de alguém, muito bem, caso contrário, sua vida não vale nada. O trecho abaixo e outros que virão, dão uma pálida ideia de como são as coisas.]

 

- Dei a ele 100 dólares.

- Nesse caso vou matá-lo. - disse Abdul Haq.

Fiquei calado.

- Você não acredita em mim, não é? - Retirou o cartucho e jogou cinco pentes de bala no tapete. - Estas são para Aziz. Ele me disse que você não lhe tinha dado nada. Eu daria a ele um pouco meu dinheiro. Ele tentou me roubar. De um amigo. Vai morrer quando eu o encontrar.

- Por favor, não faça isso - disse eu.

- É tarde demais; você não devia ter me dito nada.

- Não faça isso. Eu dei o dinheiro a ele e depois contei a você. Serei responsável por essa morte.

- Não há nada que você possa fazer. Ele mentiu. Traiu um irmão. Está morto.

 

Allaudin, o gurida "Incendiário do Mundo" [irmão do chefe assassinado] queimou e destruiu os túmulos imperiais, incendiou a cidade de Ghazni deixando-a em ruínas, saqueando e matando os habitantes... não houve ato de desolação e destruição que ele não praticasse. Desde então, a terra de Ghazni permaneceu arruinada.

 

[A primeira opção de casamento, é entre os parentes. O casamento entre primos de primeiro grau, que para nós é um tabu, uma união desaconselhada, para eles é a regra.]

 

Quem não consegue dar um jeito, arranjando um casamento de uma irmã com o irmão da própria esposa, tem de pagar mais por uma noiva do que a maioria dos homens ganha em dez anos de trabalho no Afeganistão. Em algumas aldeias, é preciso dar ao sogro dois cavalos e cinqüenta carneiros, alem de uma soma em dinheiro. Todos acham que essas importâncias são ridículas de tão elevadas, mas ninguém parece conseguir livrar-se do costume.

 

Há regras claras sobre como e com quem uma pessoa pode se casar. Nessa região, a maioria das pessoas se casava com primos em primeiro grau.

 

[E aqui o que considero o maior entrave para conciliar os muçulmanos com os demais mortais: Alá é o único Deus, e todos nós outros somos...]

 

- Esse infiel vai acabar levando uma mordida.

O velho não teria me chamado de infiel se soubesse que eu o entenderia, mas era assim que os habitantes das aldeias me consideravam. Aquela era uma comunidade religiosa muçulmana. Tinham construído uma mesquita para um aglomerado de cinco casas e todos oravam cinco vezes por dia e ouviam longas leituras do Corão nos fins de tarde.

 

[Mas, sendo infiéis, somos mais felizes que os cães.]

 

- Gosto de cães. Ninguém costuma tocá-lo?

Claro que não. É um animal impuro. Nosso Profeta nos ensinou a não tocar em cães, principalmente quando estivermos rezando. Se tocarmos, temos de fazer abluções especiais.

- Onde é que isso aparece no Corão?

- Não me lembro exatamente - respondeu Sheikh -, mas está lá.

- Pensei que você fosse um HAFIZ, que tinha decorado o Corão inteiro...

(...)

- Eu decorei o Corão - disse Sheikh. - Sou capaz de recitá-lo em árabe do princípio ao fim; mais de cem mil palavras. Mas como não sei falar árabe não compreendo exatamente onde fica cada passagem. [!!!!!!!!?????????]

 

[Aqui um exemplo muito doido de como as pessoas pulam de lado conforme as conveniências de sobrevivência.]

 

Meu anfitrião, o Seyyed Umar, era fiel a Haji Mohsin Khan, enquanto que o homem alto que acabara de sair era aliado do inimigo deste último. Dez anos antes, no entanto, ambos estiveram juntos na matança dos homens de Hajibullah na margem do rio.

- Por que se tornou mujahid? - perguntei ao Seyyed Umar.

- Porque o governo russo proibiu minhas mulheres de cobrir a cabeça com xales e confiscou meus jumentos.

- E por que lutou contra o Talibã?

- Porque eles obrigaram minhas mulheres a usar burcas, e não apenas a cobrir a cabeça, e roubaram meus jumentos.

 

[Não entendeu? Relei com calma.]

 

Os eimauks são sunitas estritos. Em suas guerras... demonstram um grau de ferocidade jamais visto entre os afegãos. Ouvi relatos autênticos de que jogam seus prisioneiros em precipícios ou os matam a flechadas; em certa ocasião, presenciada por um suri com quem conversei, chegaram a beber o sangue ainda morno de suas vitimas e passá-lo nos rostos e nas barbas.

Mountstuart Elphinstone - The Kigdom of Kaubul and its Dependencies, 1815

 

Por ter sido a capital de um Império da Rota da Seda, a Montanha Turquesa continha objetos de arte importados de toda a Ásia do século XII. (...) Sabemos muito pouco sobre esse período justamente porque, assim como sepultara a Montanha Turquesa, Gêngis Khan também eliminara outras grandes cidades do mundo islâmico oriental, massacrando seus estudiosos e artesãos, transformando as terras irrigadas da Ásia central em um território selvagem e árido e causando ao mundo muçulmano prejuízos dos quais essa cultura mal se recuperou.

 

As escavações feitas pela população [atrás de qualquer coisa que possa ter algum valor de revenda] já causaram tantos estragos que o sitio talvez jamais revele muita coisa sobre a misteriosa cultura do período gurida. A maioria de seus tesouros artísticos estava sendo levada aos mercados europeus através do Paquistão e do Irã, mas até mesmo os destroços amontoados na beira das trincheiras davam a entender a originalidade daquela cultura.

 

Mani, fundador da religião maniqueísta, hoje extinta, estava ligado a mantos coloridos e jardins de flores. Sempre se presumiu que os maniqueístas haviam abandonado aquela região muitos séculos antes da Montanha Turquesa, mas aquele fragmento me fez pensar que talvez eles tivessem sobrevivido, sob a proteção dos guridas, até a invasão de Gêngis Khan.

[Em nota de rodapé na mesma página...]

Havia um grande número de crenças na Ásia medieval muçulmana. Nas montanhas ocidentais do Irã e do Iraque ainda existem Yezidas, cuja fé sincrética combina o islã, o zoroastrismo e o cristianismo e se concentra na adoração a um anjo caído, em forma de pavão. Entre seus ídolos tradicionais havia grandes pássaros de bronze, que recordam os pássaros Huma das muralhas da cidade. O pavão que eles cultuam é representado da mesma forma que o pavão que aparece no prato gurida mostrado a mim por Bushire.

 

[Olha a doideira!]

 

O mulá me disse que havia recitado o mariam sura, que fala de Maria, mãe de Jesus, a fim de mostrar o amor dos muçulmanos por Jesus. Era o mesmo sura que eu vira inscrito no minarete de JAM.

 

[Referência, eis a questão!]

 

- Lamento - disse ele -, mas não julgue este castelo e esta família pela posição atual. Os proprietários dão Begs, chefes da tribo Pés Negros dos hazara, descendentes de Mohammed Ali Beg Tehsildar de Sang-i-zard, Tehsildar do rei Abdul Rahman, e chefe hereditário de duas mil famílias. Uma das quatro grandes famílias deste vale junto com Daulatuar, Mir Ali Hussein Beg em Taras e minha própria família em Mukhtar.

 

[Ufa!!!!]

 

[E vamos à luta...]

 

O Beg Zia prosseguiu:

- Mas houve também lutas entre as diversas aldeias deste vale. Matamos trinta homens de Sang-i-zard e eles mataram dez dos nossos, e por isso ainda existe uma rixa de sangue entre nós. Há 25 anos não é possível caminhar do principio ao fim da estrada que você está percorrendo porque é muito perigoso para nós. Você está seguro porque é estrangeiro. Se um de nós fosse a Sang-i-zard poderia ser morto. O mesmo aconteceria se fossemos para o leste. Porém... há dois meses não há assassinatos as pessoas têm medo dos americanos.

 

[De novo os círculos inclusivos. A parti do momento em que você entrou em um, tudo muda.]

 

Os homens de escolta que me eram destinados se dispunham a caminhar um dia inteiro na neve para acompanhar-me, e em seguida outro dia inteiro para regressar. Eu sempre insistia com eles para que aceitassem algum dinheiro, mas esclareciam que se tratava de uma cortesia para com um viajante e às vezes era difícil convencê-los.

 

[Curiosidade.]

 

Hussein vestia um casaco grosso forrado e uma manta que lhe envolvia a cabeça, grandes óculos escuros com a etiqueta do fabricante ainda colada no centro de cada lente e um par de galochas que não pareciam evitar a neve.

 

Embora a mulher já fosse avó, não se sentia à vontade estando a sós com um homem e retirou-se depois de cinco minutos de conversa.

 

[Vá entender...]

                                                                           

Sugeri gentilmente que ele terminasse as orações antes de voltarmos a conversar.

- Mas um hóspede é um enviado de Deus - disse ele, com ar de reprovação.

- Obrigado - respondi. - Bem, há uma coisa que queria lhe perguntar...

- Estou rezando, falaremos mais tarde.

 

Ofereci-lhe dinheiro, mas o rapaz se horrorizou. Parecia que uma caminha de ida e volta de seis horas em meio a uma tempestade frígida e com neve até o peito era a menor coisa que ele podia fazer por um hóspede.

 

Na manhã seguinte percorri o bazar para ver as "casas aquecidas" onde o imperador Babur se alojara. Encontrei somente casas vazias e chamuscadas. Yakawlang tinha sido uma das maiores cidades de Hazarajat, com uma população alfabetizada e politicamente engajada. O Talibã atacou-a em 1998 e executou quatrocentos homens no paredão da clínica. Desde então 75% da população morreram ou fugiram.

 

[O que ficou para trás.]

 

- Siga-me e tenha cuidado com as minas.

- Foi o Talibã que colocou as minas? - perguntei, puxando conversa.

- Não, fomos nós, mas não nos lembramos de todos os lugares.

 

[Como são construídas as convicções religiosas?]

 

- O Talibã fez isso com nosso sagrado Corão - disse o irmão de Ali.

(...)

- Você lê o Corão? - perguntei.

- Não; não sabemos ler nem escrever.

 

[Novamente, o que tem valor para nós?]

                                     

Ele não imaginava que um estrangeiro se interessaria pelas mortes em sua família. De certa forma, tinha razão. Os ocidentais prestaram pouca atenção ao assassinato dos hazara. O que os emocionou foi a destruição dos Budas de Bamian ou o destino do leão do jardim zoológico de Cabul.

 

[Quais as mensagens do Corão?]

 

Antes do 11 de setembro, [Tony] Blair havia aconselhado aos muçulmanos que estudassem o livro sagrado, dizendo aos leitores do Muslim News que "o conceito de amor e companheirismo como espírito orientador da humanidade é muito claro... para quem lê o Corão". Em7 de outubro, falando dos seqüestradores do 11 de Setembro, disse: "As ações dessas pessoas são contrárias aos ensinamentos do Corão... Isso me causa raiva, assim como à grande maioria dos muçulmanos.

 

Como o Corão, ao contrário da Bíblia, é a transcrição direta da palavra de Deus, ditada a Maomé em língua árabe, as traduções não são consideradas o mesmo que o Corão.

 

[A mão esquerda.]

 

Em novembro de 2001, Bush apareceu em uma foto em que puxa um exemplar do Corão casualmente por cima de uma mesa, com a mão esquerda impura, enquanto o mulá que apresentara o livro se esforçava por sorrir.

 

Como muitos aldeões, os meninos maltratavam o burro. Vi um deles quebrar um bambu no dorso do animal e depois atingi-lo com uma pedra aguda.

 

Vendo-me avançar, também meus homens avançaram,

Deixando para trás seu terror.

Chegamos ao topo da colina e expulsamos os hazara,

Percorremos as elevações e as ravinas como corças,

Saqueamos os pertences e carneiros e entre nós os dividimos;

Matamos os turcomanos hazara

E capturamos homens e mulheres;

Seguimos os que já iam distantes e os aprisionamos

Capturamos as esposas e filhos.

 

[E mais adiante:]

 

Fazer o bem aos maus é o mesmo

Que fazer o mal aos bons;

O solo salgado não produz o nardo

Não desperdice nele as boas sementes.

 

[Qual a diferença?]

 

Em Herat, muitos correspondentes de guerra previram que os afegãos odiariam o ataque norte-americano ao Talibã. Disseram que o tratamento dispensado pelo Talibã às mulheres, seu uso da lei Sharia e a demolição dos Budas de Bamiam não tinham sido mal recebidas nas aldeias. Destacavam que o Talibã "não era mais cruel" do que a Aliança do Norte e que havia melhorado as condições de segurança nas zonas rurais. A intervenção simplesmente substituiria um grupo de bandidos por outro e enraiveceria os afegãos.

 

Eu havia verificado, efetivamente, que as comunidades tadjique e aimaq não eram inteiramente adversárias do Talibã. Concordavam em que naquele período a segurança havia melhorado. As mulheres tadjiques agora cobriam a cabeça com lenços na aldeia, e somente usavam as burcas, que escondiam todo o rosto, quando iam à cidade, mas ninguém reclamava contra a falta de instrução para as mulheres durante o regime do Talibã e nem contra a imposição da lei islâmica Sharia.

 

[Que direito temos nós, ocidentais, de impor nossa cultura?]

 

A maioria dos formuladores de política quase nada sabia sobre as aldeias onde viviam 90% da população do Afeganistão. Vinham de paises pós-modernos, globalizados, seculares, com tradições liberais na legislação e no governo. Era natural que dessem início a projetos em planejamento urbano, direitos das mulheres e redes de cabos de fibra ótica; que debatessem processos transparentes, limpos e responsáveis, de tolerância e de sociedade civil; e que falassem de um povo "que deseja a paz a todo custo e compreende a necessidade de um governo centralizado e multiétnico".

Mas que sabiam da maneira de pensar da mulher de Seyyed Kerbalahi, que nunca tinha se afastado mais de cinco quilômetros de sua casa em quarenta anos? Ou do Dr. Habibullah, o veterinário que levava uma arma automática como eles levavam suas pastas de documentos? Os aldeões que encontrei eram na maioria analfabetos, não conheciam eletricidade nem televisão e pouco sabiam do mundo exterior. Tinham atitudes muito diversas em relação à política, ao Islã e a etnias. O povo de Kamenj entendia o poder político em termos de seu senhor feudal Haji Mohsin Khan. Em Herat, Ismail Khan queria implantar uma ordem social baseada na política islâmica do Irã. Os hazara como Ali detestavam a ideia de um governo central, porque a associavam à subjugação a outros grupos étnicos e ao sofrimento durante o Talibã. Essas diferenças entre os grupos eram profundas, fugidias e difíceis de vencer. A democracia nas aldeias, as questões de gênero e a centralização eram conceitos de difícil aceitação em algumas áreas.

 

Num seminário em Cabul ouvi Mary Robinson, Comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas dizer: "Há 25 anos os afegãos vêm lutando por seus direitos humanos. Não precisamos dizer-lhes quais são seus direitos." Em seguida o chefe de uma grande agencia de provisão de alimentos disse privadamente: "O povo das aldeias não está interessado em direitos humanos. São como os pobres do mundo inteiro. Só querem saber de onde virá a próxima refeição." A isso o diretor de uma ONG afegã de aconselhamento respondeu: "A única coisa que é preciso saber a respeito dessa gente é que sofrem de estresse pós-traumático".

A diferença entre um formulador de política e um hazara como Ali eram muito mais profundas do que a falta de comida. Ali raramente se preocupava com a origem da refeição seguinte. A ideia que fazia de si mesmo era principalmente a de muçulmano e hazara, e não de afegão faminto. Versões diferentes do islã, opiniões distintas sobre etnia, governo, sobre os métodos apropriados de encerrar disputas (inclusive conflitos armados) e a experiência de 25 anos de guerra variavam de região a região. Mesmo a uma distância de uma semana de caminhada, encontrei áreas onde os Begs locais tinham sido derrubados por revoluções sociais financiadas pelo Irã, e outras onde as estruturas feudais ainda estavam de pé, áreas onde a violência tinha sido infligida pelo Talibã e áreas onde os aldeões as infligiam entre si.

 

[Em nota de rodapé:]

 

Os peritos em pós-conflito obtêm prestigio sem o esforço e o estigma do imperialismo. A negação implícita das diferenças entre culturas é a nova marca de massa da intervenção internacional. As políticas fracassam, mas ninguém nota. Não há órgãos de monitoramente responsáveis e não há quem assuma responsabilidade formal.

(...)

Talvez isso ocorra porque no mundo em desenvolvimento não se exige mais do que uma sedutora ilusão de atividade. Se os formuladores de política pouco sabem sobre o Afeganistão, o público sabe menos ainda e poucos se importam com o fracasso das políticas quando seus efeitos são sentidos somente no Afeganistão.

 

[Deus e o futuro.]

 

- Se Deus quisesse, não haveria guerra - acrescentou Ali -, mas no futuro lutaremos por muitas coisas contra outros povos.

 

[Como se formam as religiões.]

 

À medida que avançava, o budismo modificou-se. No Tibete absorveu a antiga religião Bom-Po e criou novas demonologias. No norte da Índia do século XVIII tornou-se escolástico; entre os monges das florestas do Sri Lanka, pragmático; em Newar, no Nepal, monges casados praticavam um tantra invertido; e no Japão os devotos do Zen contemplavam paradoxos minimalistas.

 

[Prescrição médica!!!]

 

Naquela tarde o comandante das tropas hazara demonstrou seu status distribuindo pílulas com rótulos de Drotaverina, Ácido mefenâmico e Rowatex. Engoliu uma de cada antes de oferecê-las e todos, menos eu, pegaram um punhado. Depois bebeu de uma garrafa que tinha a figura de um cérebro de um lado e do outro uma junta de bois puxando um arado. Parecia coisa de veterinário.

 

[Os limites do poder nos jovens.]

 

 

Ao sair [Rory acompanhado/protegido por 2 jovens de 17 anos] de Siahak passamos por uma menina que parecia ter quatorze anos. Ela nos olhou enquanto enchia vasilhas de água.

- Vamos pegá-la e fodê-la? - perguntou ele. O outro riu alto.

- Como se diz "foder" em inglês?

Repetiu minha resposta diversas vezes, rindo mais a cada vez.

No Irã muitas vezes as pessoas comentaram comigo a beleza das mulheres persas, mas os afegãos, assim como os aldeões do Paquistão, nunca tinham falado de mulheres comigo.

 

[Quando estava no meio da leitura de Os lugares do meio, recebi de presente o livro.... , que me induz a esperar que me dará ainda mais informações sobre a natureza humana.]