EXTRATO DE: NASCIDOS EM TEMPOS LÍQUIDOS

Autor: Zygmunt Bauman com Thomas Leoncini

Ed. Zahar – 2017/2017/2019

Troca de correspondência entre Bauman e Leoncini, 60 anos mais jovem. Livro finalizado e publicado por Leoncini post mortem de Bauman.

Últimos pensamentos de Bauman, falecido em 9 de janeiro de 2017.

 

TRANSFORMAÇÕES NA PELE

 

A existência corpórea não terá realmente fim ela, continuará exatamente como havia começado antes do aparecimento do meu corpo e antes do início do meu pensar, antes do meu "vir ao mundo". Continuará sob a forma da presença corporal de outras pessoas.

 

THOMAS LEONCINI:

Aristóteles já definia o homem como incompleto.

Mas o desejo de completude (vão e ilusório) (...)

(...) nosso corpo é lugar de encenação do eu?

(...) as modas são antropopoiéticas, fazem parte de um ser humano que constrói conscientemente o seu ser humano.

(...) o "móbil" político da tatuagem é um aspecto desaparecido em nossa modernidade líquida.

ZYGMUNT BAUMAN:

Tais modalidades emulativas de manipulação do aspecto público do próprio corpo (...) nascem da humana, demasiado humana, reelaboração moderna da identidade social de dado para tarefa.

(...) a dialética de pertencimento e individualidade (...)

A vestimenta assinala (...) a própria capacidade de encarnar paralelamente uma série de identidades diferentes.

Os símbolos de decisões identitárias gravados no próprio corpo sugerem (...) um compromisso mais sério e duradouro, e não somente um capricho momentâneo.

 

TL:

George Raimondo Cardona em 1981: "para os Bafia, de Camarões, um homem sem escarificações não é diferente de um porco ou de um chimpanzé".

O relativismo cultural é a atitude segundo a qual comportamentos e valores, para serem compreendidos, devem ser considerados em seu contexto amplo, no qual ganham vida e forma.

Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos: entre os adolescentes americanos (de treze a dezenove anos), o percentual de meninos e meninas que recorrem à plástica aumenta pelo menos 1% ao ano.

O lifting nas partes íntimas aumentou 3.973% entre 2000 e 2015. As exigências mudam com a idade, mas o negócio da cirurgia plástica parece ser o senhor dos tempos.

ZB:

Transformar a possibilidade em obrigação, ou seja, transformar oferta em demanda.

TRANSFORMAÇÕES DA AGRESSIVIDADE - BULLYING

ZB:

Do  romancista E. M. Forster: "dei-me conta de que designar um inimigo e demonstrar a todo custo a inferioridade dele era a inseparável outra face da medalha da identificação do eu. Não existiria um "nós" sem um "eles".

TL:

O ser humano tende a deslocar para a responsabilidade social coletiva sua responsabilidade pessoal.

Sobre a manchete "Trinta e sete pessoas assistiram a um homicídio sem chamar a polícia" do New York Times em 1964: há mais probabilidade de que uma só testemunha de um evento trágico, e que percebe estar sozinha, intervenha em socorro da vítima que um indivíduo que se dá conta de estar com outros, de uma presença coletiva de semelhantes.

ZB:

Fazer o mal já não exige motivações. Será que o mal, inclusive o bullying, já não terá se deslocado consideravelmente da classe das ações voltadas para um objetivo (ou seja, sensatas, a seu modo) para o âmbito de um agradável passatempo e entretenimento (para um número crescente de "espectadores")?

 

TRANSFORMAÇÕES SEXUAIS E AMOROSAS - Derrocada dos tabus na era do amor on-line

TL:

O conceito de não-lugares formulado por Marc Augé. O espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar. Constituído por duas características: em relação a determinados fins (transporte, trânsito, comércio, tempo livre) e em relação aos próprios vínculos que os indivíduos mantêm com esses espaços.

O não-lugar mais moderno e liquido por excelência é a web onde se vive sempre num limbo de bolso que não existe e que cria relações contínuas mas inexistentes (...).

A necessidade dos jovens do passado, assim como a dos de hoje, de experimentar particular interesse por todas as realidades que encurtam ainda mais as distâncias espaciais e aceleram pó percurso de seleção e recrutamento dos parceiro sexuais, a favor de um extermínio do tempo sobre o espaço.

Com nossos perfis pessoais nas redes sociais, todos experimentamos antes de mais nada a ilusão do totalitarismo: somos livres para excluir os usuários, para eliminar os pedidos de "conexão" só porque não conhecemos alguém pessoalmente.

ZB:

A web entrou triunfante em nosso mundo prometendo criar "um hábitat ideal, político e democrático"; mas aonde nos ajudou a chegar? À hodierna crise da democracia e ao agravamento das divisões e dos conflitos políticos e ideológicos.

Por mais sozinhos que possamos estar e/ou sentir, no mundo on-line estamos potencialmente sempre em contato.

Estamos vivendo sob preceitos e regras diferentes já que estamos destinados a habitar ambos os mundos, dividindo assim nossas horas, nossos dias (nossas vidas?) entre dois distintos universos, códigos comportamentais, modalidades de convivência e interação.

A maior parte das pesquisas sociológicas mostra que a maioria dos usuários recorre à internet atraída não tanto pela oportunidade de acesso quanto pela de saída. Essa segunda oportunidade se revelou até agora mais aliciante; é amplamente usada mais para construir um refugio que para derrubar paredes e abrir janelas; para recortar uma zona de conforto toda para si, longe da confusão do caótico e desordenado mundo da vida e dos desafios que ele apresenta ao intelecto e à tranquilidade de espírito.

Em vez de servir à causa de ampliar a quantidade e melhorar a qualidade da integração humana, da compreensão, da cooperação, da solidariedade recíprocas, a web facilitou as práticas de isolamento, separação, exclusão, inimizade e conflito.

TL:

Nascido há mais de 2.400 anos, Platão afirmou que o homem ficará chocado pelo comportamento de seus semelhantes se não for capaz de observar que homem é impregnado de amor à fama e anseia por obter a glória imortal.

Hoje qualquer um pode se tornar famoso se for colocado no lugar certo, até uma dona de casa ou milhões de cozinheiros espalhados pelo mundo.

Na modernidade líquida, a ansiedade e a depressão aumentaram notavelmente, mas a exigência epicurista da invisibilidade está quase desaparecida.

Jamais foi tão sutil em nossa sociedade a relação entre sexo e amor nas pessoas mais jovens. O velho conceito de homem cortejador e mulher cortejada agora é uma miragem arcaica, quase ridícula. As novas gerações de mulheres e liberaram do papel feminino: hoje a "fêmea" é cada vez mais dominante e líder na escolha do parceiro.

ZB:

Dois valores indispensáveis, para uma vida digna, gratificante e nobre: segurança e liberdade. (...) Não é possível aumentar a própria segurança sem reduzir a própria liberdade, nem aumentar a própria liberdade sem ceder um pouco da própria segurança.

TL:

A destruição faz parte da essência mesma do desejo. O desejo é um impulso que destrói, ou melhor, um impulso de autodestruição. (...) Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir.

ZB:

Com muita frequência, o sucesso numa frente se paga com o fracasso na outra - às vezes beirando a débâcle.

(...) o duro golpe desfechado contra minha autoestima pela humilhação de não me encontrar à altura da tarefa (...).

As mudanças não seguem uma linha reta; em lugar disso elas seguem uma trajetória pendular, que oscila de modo intermitente entre os dois pólos de "plena liberdade" e "plena segurança".

TL:

Lévi-Strauss: "O nascimento da cultura coincide com a proibição do incesto."

No futuro será abolido inclusive o incesto?

ZB:

Lévi-Strauss definia a cultura como um contínuo processo de estruturação, o cruzamento entre diferenciação do homogêneo e homogeneização do diferenciado (...).

TL:

A busca da vida próspera através do trabalho se torna cada vez mais uma miragem periférica.

O amor sólido raciocinava em termos de amor eterno, o amor liquido raciocina daqui até as próximas "eternas" 24 horas.

POSFÁCIO - A última lição.

TL:

Na última mensagem que me enviou, ele me perguntava quanto, em minha opinião, deveria ainda escrever para concluir o último capítulo do nosso livro. Ele, o maior perguntando a mim, um fedelho, quanto devia escrever. A grandeza desse homem só era comparável à sua humildade.

Zygmunt Bauman tinha um dom extraordinário: ensinou-nos um método de análise e viveu para construir instrumentos que permitissem compreender onde nos encontramos e para onde iremos.

Para Ortega y Gasset, o ponto crucial não é o fato de as gerações serem diferentes uma das outras: é sua coabitação simultânea no mesmo mundo.

Zygmunt Bauman reiterou que, se temos o progresso, se temos a história, é graças à dialética entre continuidade e descontinuidade. Não se pode falar dos anciãos a não ser em oposição aos jovens: pais/filhos, professores/alunos se definem reciprocamente graças à relação de interdependência.

Na modernidade líquida os nascidos neste tempo liquido têm somente os meios. Alguns recursos, algumas competências, algumas habilidades. Mas, no nível inconsciente, cada um pode apenas se perguntar constantemente: afinal, o que posso fazer com tudo isso?

Bauman sabia que a proliferação da luta geracional não passa de um engano.