EXTRATO DE: Autobiografia de NELSON MANDELA

Longo caminho para a Liberdade

Editora: Siciliano

 

(...) Qunu era um povoado de mulheres e crianças, porque os homens passavam a meior parte do ano trabalhando em fazendas distantes dali ou nas minas ao longo do Reef, a enorme cordilheira de minérios auríferos e xisto que forma os limites meridionais de Johannesburgo. Eles voltavam para casa uma ou duas vezes por ano, basicamente para arar a terra e semear. As mulheres e as crianças ficavam com a tarefa de capinar e colher. Uma ou outra pessoa do povoado sabia ler e escrever, quando muito, e a ideia de ensino ainda era estranha a muita gente.

 

Não temos meios-irmãos nem meias-irmãs. A irmã de minha mãe é minha mãe; o filho de meu tio é meu irmão; o filho de meu irmão é meu filho e a filha de meu irmão é minha filha.

 

Mal havia completado cinco anos quando me tornei pastor, encarregado de tomar conta dos carneiros e bezerros no pasto.

 

Desde criança aprendi a derrotar meus adversários sem desonrá-los.

 

Como todas as crianças xhosas, adquiri meus conhecimentos principalmente pela observação. Esperava-se que aprendêssemos imitando e seguindo os outros, sem perguntar nada. Quando comecei a freqüentar as casas dos brancos, costumava ficar confuso com o números e a natureza das perguntas que os filhos faziam aos pais e, mais ainda, com a inabalável disposição dos pais em responder. ]Em minha casa as perguntas eram consideradas um aborrecimento, e os adultos só davam alguma informação quando achavam necessário.

 

 

Nosso modelo era o inglês instruído e todos nós queríamos ser ‘ingleses pretos’, como costumavam nos chamar de caçoada.

 

O governo sempre havia utilizado a tática de ‘dividir para governar’ quando se tratava de africanos e dependia da resistência das divisões étnicas entre os povos. No entanto, em lugares como Alexandra essas diferenças estavam sendo apagadas.

 

O falecimento do regente eliminou do cenário um homem esclarecido e tolerante que atingiu a meta que marca o reinado de todos os grandes líderes: manteve o seu povo unido. Liberais e conservadores, tradicionalistas e reformadores, funcionários públicos e operários das minas, todos permaneceram leais a ele, não porque concordassem sempre com ele, mas pelo fato de ele ouvir e respeitar todas as opiniões, por diferentes que fossem.

 

Gaur argumentava que a educação era essencial para nosso progresso, mas salientava que nenhum povo e nenhum país jamais havia se libertado exclusivamente por meio da educação. “Instrução é uma ótima ideia”, dizia Gaur, “mas se formos depender de instrução teremos de esperar mil anos por nossa liberdade. Somos pobres, temos poucos professores e ainda menos escolas. Não temos força nem para nos instruirmos”.

 

Um dia o sr. Muller apontou para a janela e disse: “Olhe ali, Nelson, está vendo aqueles homens e aquelas mulheres andando depressa, rua acima e rua abaixo? Estão atrás de quê? Vou lhe dizer: todos eles, sem exceção, estão atrás de fatura e dinheiro Porque fartura e dinheiro correspondem a felicidade. É para ter isso que você precisa se esforçar: dinheiro e nada mais que dinheiro. Basta ter dinheiro suficiente e não há necessidade d e mais nada na vida”.

 

William Smith me disse, “Nelson, eu passei muitos anos metido em política e me arrependo amargamente. Desperdicei os melhores anos de minha vida esforçando-me futilmente a serviço de nos vãos e egoístas que punham os próprios interesses acima dos interesses do povo ao qual fingiam servir. Pela minha experiência, a política não passa de uma máfia destinada a roubar dinheiro dos pobres”.

 

Na política, por mais que se planeje, em geral o que dita os acontecimentos são as circunstâncias.

 

Como já mencionei, a Lei do Registro da População autorizou o governo a classificar oficialmente todos os sul-africanos de acordo com a raça. Se não tinha sido assim até então, no momento a raça passou a ser a condição sine qua non da sociedade africana. Os testes arbitrários e sem sentido que serviam para distinguir um preto de um mestiço e um mestiço de um branco com freqüência resultavam em casos trágicos em que membros da mesma família recebiam diferentes classificações, tudo dependendo de um filho ter pele mais clara ou mais escura. Onde a pessoa tinha licença de morar e trabalhar podia depender de distinções absurdas como o grau de encrespamento dos cabelos ou a grossura dos lábios.

 

As leis que despojavam as pessoas de seus direitos eram mencionadas como se fossem leis que restauravam esses direitos.

 

Os africanos ansiavam por assessoria jurídica em edifícios governamentais, já que era crime passar por uma porta onde estava escrito “só para brancos”, era crime andar num ônibus “só para brancos”, era crime beber num bebedouro “só para brancos”, era crime passear numa praia só para brancos”, era crime andar em qualquer rua depois das 23 horas, era crime não ter uma caderneta de passes e era crime ter uma assinatura errada na caderneta, era crime estar desempregado e era crime estar empregado em um lugar inadequado, era crime morar em determinados lugares e era crime não ter onde morar.

 

Os que lutam pela liberdade aprendem a duras penas que é o opressor quem define a natureza da luta e que em geral nada resta ao oprimido senão usar métodos que espelham os do opressor. Depois de um certo ponto, só se pode combater o fogo com fogo.

 

O que distingue uma pessoa de outra não é o que recebemos, é o que fazemos a partir do que temos.

 

Disse que se estivesse numa posição como a dele, procuraria subordinar meus interesses ao do povo. No mesmo instante arrependi-me de ter disto isso porque vim a descobrir que nas discussões não ajuda nada adotar um tom moralmente superior ao do adversário.

 

Muitos dos que se unirão ao PAC o fizeram por causa de alguma frustração ou desavença pessoal e não estavam pensando no progresso da luta, mas sim nos próprios sentimentos de ciúme ou vingança. Eu sempre achei que para lutar pela liberdade se precisa eliminar muitos sentimentos pessoais que nos fazem sentir como indivíduos separados e não uma parte de um movimento de massa. Estamos lutando pela libertação de milhões de pessoas, não pela glória um único indivíduo. Não estou sugerindo que devamos nos transformar em robôs e nos livrar de todos os sentimentos e motivações pessoais. Mas, do mesmo modo que quem luta pela liberdade subordina sua família inteira à família do povo, precisamos subordinar os próprios sentimentos individuais movimento.

 

Eu achava que os pontos de vista e o comportamento do PAC eram imaturos. Uma vez um filósofo observou que há alguma coisa estranha quando alguém não é liberal quando jovem e não é conservador quando fica velho. Eu não sou conservador, mas a gente amadurece e começa a achar que algumas opiniões que tinha na juventude eram primárias e imaturas.

 

Minha carreira de advogado e ativista fez cair a venda dos meus olhos. Vi que havia uma diferença enorme entre o que eu aprendera na sala de aula e o que fiquei sabendo no tribunal. Passei de uma visão idealista da lei como espada da justiça para a percepção da lei como a ferramenta usada pela classe governamental para moldar a sociedade de um jeito favorável a essa classe. Nunca esperei justiça nos tribunais, por mais que lutasse por ela e apesar de algumas vezes a ter recebido.

 

“Se alguém estiver achando que sou pacifista, esperem até esse alguém tentar roubar as minhas galinhas, e ele vai saber o quanto está enganado!”

 

A prisão não só rouba a pessoa da liberdade, como procura tirar-lhe a identidade. Todo mundo usa uniformes iguais, como o mesmo tipo de comida, segue o mesmo horário. É, por definição, um estado puramente autoritário que não tolera nenhuma independência nem individualidade. Como soldado da liberdade e como homem, é preciso lutar contra a tentativa que a prisão faz de nos roubar dessas qualidades.

 

O Partido Comunista procurava dar ênfase à diferença entre as classes, ao passo que o CNA procura harmonizá-las.

 

Shakespera diz: “Seja positivo com a morte; assim uma das duas será mais doce, a morte ou a vida”.

 

Eu sou basicamente otimista. Se isso vem da natureza ou da maneira como fui criado, eu não sei. Ser otimista significa em parte manter a cabeça voltada para o sol e os pés se movimentando para a frente. Houve muitos momentos sombrios em que minha fé na humanidade foi dolorosamente testada, mas eu não quis nem pude me deixar cair no desespero porque no desespero residem a derrota e a morte.

 

(...) todos os homens, até os que parecem mais insensíveis, têm decência em seu âmago, e quando seu coração é atingido, são capazes de mudar. Em última análise, Badenhorst não era mau; um sistema desumano é que havia imposto aquela desumanidade. Ele se comportava com brutalidade porque era recompensado por esse comportamento. [Este comentário de Mandela pode ser aplicado aos atos das ditaduras militares e ao que houve na Alemanha nazista.]

 

Dogma do socialismo [sic]: “De cada um conforme sua capacidade e a cada um conforme sua necessidade”, poderíamos receber uma pergunta como “Muito bem, mas o que isso significa na prática? Se eu tenho terra mas não tenho dinheiro e um amigo meu tem dinheiro mas não tem terra, qual de nós é o mais necessitado?” Esse tipo de pergunta tinha um valor imenso e nos obrigava a pensar muito bem em nossas concepções.

 

É difícil negociar com quem não compartilha do mesmo sistema de coordenadas.

 

O exercício [físico] dissipa a tensão e a tensão é inimiga da serenidade.

 

(...) para liderar de fato um povo é necessário conhecê-lo verdadeiramente.

 

(...) a instrução é inimiga do preconceito. (...) a ciência não tem lugar para o preconceito.

 

Queria antes de tudo dizer ao povo que não era um messias, era um homem comum que havia se tronado líder devido a circunstâncias extraordinárias.

 

Apesar de suas atividades aparentemente progressivas, De Klerk nem de longe era o grande emancipador. Era um pragmático gradualista e cauteloso. Das reformas que fez, nenhuma teve a intenção de colocá-lo fora do poder. Fez todas as reformas exatamente pelo motivo oposto, isto é, para garantir o poder para os africânderes numa nova ordem do país. E não estava em absoluto disposto a negociar o fim do governo dos brancos.

 

(...) do mesmo modo que estou convencido que a vida de minha esposa enquanto eu estive na prisão foi muito pior do que a minha, em muitos aspectos minha volta foii muito mais difícil para ela do que para mim. Ela se casou com um homem que logo a deixou; esse homem se transformou em mito; e depois o mito voltou para casa e demonstrou que afinal de contas era apenas um homem.

 

Eu nunca procurei desgastar o Sr. De Klerk pelo motivo prático de que quanto mais fraco ele ficasse, mais o processo de negociações ficaria em perigo. Para fazer as pazes com um inimigo precisamos trabalhar com esse inimigo, que por sua vez fica sendo nosso parceiro.

 

Descobri que coragem não era ausência de medo, era o triunfo sobre o medo.

 

Eu sempre soube que bem no fundo do coração humano havia misericórdia e generosidade. Ninguém nasce detestando outra pessoa por causa da cor da pele, da formação ou da religião. As pessoas precisam aprender a odiar, e se conseguem aprender a odiar também conseguem aprender a amar, pois só amor chega ao coração humano com mais naturalidade que seu oposto.

 

Numa sociedade humana e civilizada, cada homem é capaz de cumprir essas obrigações de acordo com as prórpias tendências e capacidades. Mas um país como a África do Sul era quase impossível um homem de minha cor e com minha origem cumprir os dois tipos de obrigações. Na África um homem que tentasse cumprir seu dever para com o próprio povo era inevitavelmente arrancado da família e de casa e obrigado a levar uma vida à parte, uma existência obscura de clandestinidade e rebelião.

 

Eu não nasci com fome de liberdade. Nasci livre, livre de toas as maneiras que conseguia ver. Livre para correr pelos campos próximos da cabana de minha mãe, livre para nadar no rio de águas claras que corria por minha aldeia, livre para assar espigas de milho sob as estrelas e cavalgar o lobo largo dos touros que andavam lentamente. Desde que obedecesse a meu pai e seguisse os costumes da tribo, nunca era incomodado por leis, nem do homem nem de Deus.

 

A liberdade é indivisível; os grilhões de qualquer indivíduo de meu povo eram os grilhões de todos e os grilhões de todos do meu povo eram os grilhões que me prendiam.

 

Um homem que tira a liberdade de outro é prisioneiro do ódio e está trancado atrás das grades do preconceito e da intolerância. Não sou verdadeiramente livre se estou tirando a liberdade de alguém, do mesmo modo que certamente não sou livre quando me tiram a liberdade. Tanto o opressor como o oprimido são roubados de sua humanidade.

 

Quando saí da cadeia minha missão era essa, libertar tanto o opressor como o oprimido. Alguns dizem que isso foi conseguido. Mas eu sei que não é o caso. A verdade é que ainda não estamos livres; apenas atingimos a liberdade de sermos livres, o direito de não sermos oprimidos. Ainda não demos o passo final de nossa jornada; demos apenas o primeiro passo de uma estrada ainda mais comprida e difícil. O fato é que ser livre não é apenas deitar abaixo as correntes, é viver de um modo que respeita e realça a liberdade dos outros O verdadeiro teste da nossa dedicação à liberdade está apenas começando.

 

Já percorri esse longo caminho da liberdade. Procurei não vacilar e dei muitos passos em falso no percurso. No entanto, descobri que depois de subir um monte bem alto a gente apenas verifica que há muitos outros montes a escalar. Tirei um instante para descansar, para dar uma olhadela no panorama glorioso que me cerca, para olhar para trás e ver que distância percorri. Porém só posso descansar um instante, pois com a liberdade vêm as responsabilidades e eu não ouso demorar-me; minha longa caminhada ainda não terminou.