ANOTAÇÕES DE

ORIGEM DAS ESPÉCIES

 

Autor: Charles Darwin – 1809 a 1882

Editora: Vila Rica - 1994

1ª edição da obra original: 24 de novembro de 1859

Darwin nasceu em Shrewsbury, a 12 de fevereiro de 1809.

 

ESBOÇO HISTÓRICO DO PROGRESSO DA OPINIÃO ACERCA DO PROBLEMA DA ORIGEM DAS ESPÉCIES, ATÉ A PUBLICAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DESTE TRABALHO

 

[O trecho a seguir está em “Notas” ao final deste prólogo]

 

1.      Aristóteles, nas suas Physicae Auscultationes (Física, livro II, cap. 8), após observar que a chuva não cai com a finalidade de fazer crescer os cereais, e tampouco com a de apodrecer os grãos debulhados pelo fazendeiro e deixados expostos ao tempo, aplica o mesmo argumento aos organismos, acrescentando (conforme a tradução de Mr. Clair Greece, a quem devo a indicação da passagem):  “Portanto, o que impediria que fossem meramente acidentais as relações entre as diversas partes do corpo? Os dentes, por exemplo, crescem de acordo com as nossas necessidades: os incisivos são cortantes e próprios para dividir os alimentos, enquanto que os molares são chatos e adequados à mastigação. Todavia, não foram eles feitos para tais finalidades, sendo assim como são por mero acidente. O mesmo pode ser dito quanto às outras partes do corpo, que também parecem possuir adaptação a um determinado fim. Por conseguinte, onde quer que todas as partes de um certo conjunto parecerem constituídas como se feitas para alguma finalidade especifica, o que foram é preservadas. Essa constituição adequada, na realidade, decorre tão-somente de alguma espontaneidade interna. Já as que não forem assim constituídas, estas desaparecem e ainda estão desaparecendo”.

 

INTRODUÇÃO

 

Como de cada espécie, nascem muito mais indivíduos do que o numero capaz de sobreviver, e como, consequentemente, ocorre uma freqüente retomada da luta pela existência, segue-se daí que qualquer ser que sofra uma variação, mínima que seja, capaz de lhe conferir alguma vantagem sobre os demais, dentro das complexas e eventualmente variáveis condições de vida, terá maior condição de sobreviver, tirando proveito da seleção natural.

 

CAPÍTULO I – VARIAÇÃO NO ESTADO DOMÉSTICO

 

Parece evidente que os seres orgânicos devam ser expostos durante muitas gerações a novas condições de vida para que neles se produza uma soma apreciável de modificações, e que o organismo, desde que iniciou seu processo de variação, geralmente continua a variar durante muitas gerações seguidas.

 

De fato, o sistema reprodutor parece ser bem mais suscetível à ação de alguma mudança nas condições de vida que qualquer outra parte do organismo.

 

Quantos animais existem que não se reproduzem, mesmo vivendo há tempos sob confinamento apenas relativo em sua própria terra natal!

 

Por um lado, temos vegetais e animais domésticos que, embora por vezes raquíticos e fracos, se reproduzem com a maior facilidade quando confinados; por outro lado, temos indivíduos que, embora tirados de seu habitat natural no estagio inicial de seu desenvolvimento , e tendo sido perfeitamente domesticados, ostentando aspecto robusto e saudável, apesar disso possuem um sistema reprodutor tão seriamente afetados por causas desconhecidas, que seu funcionamento simplesmente cessa por completo.

 

[A prova de que o meio ambiente age sobre o organismo é exatamente o fato de que a fertilidade se altera em cativeiro.]

 

Costuma-se afirmar que a esterilidade constitui a maior praga da horticultura; todavia, há que se ter em conta que a variabilidade se deve à mesma causa da esterilidade – e a variabilidade é a fonte das mais excelentes produções da jardinagem.

 

De qualquer maneira, esses casos mostram que a variação não está necessariamente ligada ao ato da geração, conforme diversos autores supõem que seja.

 

O habito também tem uma influencia decisiva, como no período da floração, quando as plantas são transportadas de um clima para outro.

 

Nenhum criador duvida da força que tem a tendência à hereditariedade (...) cada qual produz seu semelhante.

 

Talvez a maneira correta de encarar esse assunto seja a de se considerar como regra geral a hereditariedade dos caracteres, quaisquer que seja, e a não-hereditariedade como a exceção.

 

As leis que regula a hereditariedade são inteiramente desconhecidas. Ninguém sabe explicar por que uma determinada peculiaridade surgida em diversos indivíduos da mesma espécie ou de espécies diferentes seja ora hereditárias, ora não; ou por que soi reaparecer numa criança certas características do avo ou da avó, senão mesmo de um ancestral bastante remoto;

 

A variação caracterizada por uma forma peculiar [qualquer], poderia ter surgido subitamente numa determinada brotadura.

 

A explicação reside na capacidade humana de seleção acumulativa: a natureza fornece as variações sucessivas; o homem sabe como levá-las para determinadas direções úteis para ele. Nesse sentido pode-se dizer que o homem criou raças úteis para si próprio.

 

Isso talvez explique em parte algo que tem sido observado por diversos autores, isto é, que as variedades dos animais criados por povos selvagens guardam mais suas características especificas do que as variedades criadas nos países civilizados.

 

Quanto mais anormal ou incomum dor a característica observada pela primeira vez, mais essa característica irá chamar-nos a atenção.

 

A criação de grande numero de indivíduos num determinado local exige que sejam colocados sob condições de vida favoráveis de modo a se reproduzirem livremente. Quando são raros os indivíduos de uma espécie,, todos, quaisquer que sejam suas qualidades, serão levados a reproduzir-se, o que impedirá efetivamente a seleção.

 

Acima de todas essas causas de variação, estou convencido de que a ação acumulativa da Seleção, seja aplicada metodicamente, com resultados rápidos; seja aleatoriamente, com resultados mais lentos, constitua efetivamente o Fator predominante.

 

CAPÍTULO II – VARIAÇÃO NO ESTADO NATIVO

 

As espécies que geralmente variam mais são as mais numerosas e dominantes dos gêneros mais ricos, cujas variedades, conforme mais tarde veremos, tendem a se tornar cada vez maiores, assim como as formas de vida atualmente dominantes tendem a acentuar cada vez mais essa características, uma vez que produzem descendentes modificados e aperfeiçoados. Por outro lado, os gêneros mais ricos tendem a dividir-se em gêneros menores. Desse modo, as formas de vida existentes em todo o mundo vão-se dividindo em grupos que por sua vez, estão subordinados a outros grupos.

 

 

CAPITULO III – A LUTA PELA EXISTÊNCIA

 

Princípio da Seleção Natural : o principio através do qual toda variação, por menor que seja, deve preservar-se, desde que apresente utilidade para o indivíduo.

 

Luta pela existência : uso esta expressão em sentido amplo e metafórico, incluindo nesse conceito a idéia de interdependência dos seres vivos, e também não só a vida de um indivíduo, mas sua capacidade de deixar descendência.

 

Esta luta resulta inevitavelmente da maior ou menor velocidade de reprodução dos organismos.

 

Em estado selvagem, quase toda planta produz sementes, e poucos animais não se acasalam todos os anos. Daí poder-se afirmar sem receio que todas as plantas e animais tendem a aumentar em proporção geométrica, desse modo povoando rapidamente seus locais de ocorrência.  Entretanto, a tendência de aumento em proporção geométrica deve ser contrabalançada pela destruição em determinado período da vida.

 

Se o animal é de algum modo capaz de proteger seu ovo ou seu filhote, sua reprodução poderá caracterizar-se pelo pequeno numero, e mesmo assim a população média da espécie será mantida sem alteração. Por outro lado, se muitos ovos ou filhotes estiverem sujeitos à destruição em massa, será necessário produzir-se um grande numero deles, para que a espécie não chegue à extinção.

 

Em relação  ao que ocorre na natureza, é absolutamente necessário termos em mente as seguintes considerações: nunca nos esquecermos de que todo ser organizado que vive em torno de nós se esforça ao máximo, por assim dizer, para crescer e multiplicar-se; que cada um, pelo menos em determinados períodos de sua vida, tem de lutar para sobreviver; que uma destruição considerável inevitavelmente incide sobre os mais jovens ou sobre os mais velhos, seja em cada geração, seja a intervalos periódicos.

 

É quase impossível saber o que poderia reduzir a tendência natural da espécie de se multiplicar.

 

As espécies, mesmo as mais abundantes, estão sofrendo constantemente uma considerável destruição nesse ou naquele período de sua vida, por parte de inimigos ou rivais que disputam o mesmo território ou os mesmos alimentos. Se esses inimigos ou rivais forem favorecidos, em mínima escala que seja, por alguma ligeira alteração climática, hão de ter seus totais aumentados, e, em contrapartida, a outra espécie terá seus totais reduzidos. Quando nos deslocamos para o sul, e verificamos a diminuição numérica de uma espécie podemos estar certos de que a mesma causa que lhe é prejudicial está concorrendo em favor de outra espécie, cujo numero deve estar aumentando.

 

Quando uma espécie, graças a circunstancias altamente favoráveis, se multiplica de maneira desordenada dentro de uma área restrita, costuma acontecer de sobrevir alguma epidemia (...)

 

Mr. H. Newman: “Descobri que os ninhos dos abelhões são mais numerosos nas proximidades das vilas e das aldeias, o que atribuo à presença dos gatos, que destróem os ratos.” Por essa razão, é bastante lógico que a presença maciça de felinos num certo local pode determinar, em razão de sua influencia direta sobre o numero de certos ratos e indireta sobre o das abelhas, a presença maior ou menor de certas flores desse local!

 

Todas as espécies, portanto, estão sujeitas à ação de diferentes fatores que limitam seus números, agindo durante períodos diferentes de sua existência e durante determinadas épocas ou estações do ano. Alguns desses fatores devem ser mais ativos que outros, mas é a ação conjunta de todos eles que irá determinar a quantidade média de ocorrência, se não mesmo a própria existência da espécie. Há certos casos em que se poderia demonstrar a ação de fatores absolutamente diversos limitando o numero da mesma espécie, em áreas diferentes.

 

 APÍTULO IV – SELEÇÃO NATURAL

 

É a preservação das variações favoráveis e eliminação das variações nocivas que dou o nome de Seleção Natural. Quanto às variações que não são vantajosas nem nocivas, essas não serão afetadas pela seleção natural, permanecendo como uma característica oscilante, tais como as que talvez se possam verificar nas espécies denominadas polimorfas.

 

No caso há pouco citado, é de se presumir que as condições de vida tenham sofrido alguma alteração, e isso seria manifestamente favorável à seleção natural, criando condições mais propicias para o surgimento de variações vantajosas. Ora, a seleção natural não pode agir senão quando ocorrem variações proveitosas. [???]

 

[Eu penso diferente. Não são as variações no ambiente que obrigatoriamente provocam “variações proveitosas”. Se não houver variação na prole, a espécie tenderá a se extinguir pois não foi capaz de produzir um “erro” que lhe beneficiasse nas novas condições.]

 

A seleção dirigida pelo homem [ele está se referindo aos animais criados pelo homem] visa apenas seu próprio bem; a da natureza se volta exclusivamente para o bem do indivíduo modificado.

 

Fugazes são os desejos e esforços do homem, e curto é seu tempo – e como! Daí a pequenez de sua obra de seleção, comparada com a que pode ser acumulada pela natureza durante períodos geológicos inteiros.

 

A seleção natural modifica a estrutura dos filhos em relação à dos pais, e vice-versa. Nos animais gregários, adapta a estrutura de cada indivíduo, em prol da comunidade; cada qual, consequentemente, é beneficiado pela modificação adquirida. O que a seleção natural não pode fazer é modificar a estrutura de uma espécie visando o beneficio de uma outra, sem que o ser modificado tire qualquer vantagem dessa alteração.

 

[Na luta dos machos pela fêmea] Para o derrotado, a conseqüência não é a morte, mas sim a redução parcial ou total de seus descendentes.

 

Devo dizer, primeiramente, que coletei numerosíssimos fatos que comprovam a crença quase universal dos criadores e cultivadores, de que, tanto para os vegetais como para os animais, um cruzamento, seja entre indivíduos de diferentes variedades, seja entre espécimes da mesma variedade, mas de linhagens distintas, confere vigor e fecundidade aos descendentes; por outro lado, o cruzamento entre indivíduos que sejam parentes próximos – cruzamentos consangüíneos – diminui o vigor e a fertilidade. Apenas por estes fatos, sinto-me inclinado a acreditar na existência de uma lei geral da natureza (cujo enunciado, porém, ignoramos inteiramente) segundo a qual nenhum ser vivo se autofertilizaria por uma eternidade de gerações, sendo indispensável para a permanência da espécie que haja um ou dois cruzamentos, ainda que ocasionalmente – e talvez a intervalos bem longos.

 

Mesmo no caso dos animais de reprodução lenta, que têm de copular para se fecundar, não devemos superestimar os efeitos dos cruzamentos quanto à redução da capacidade seletiva da natureza pois eu seria capaz de exibir um elenco considerável de fatos comprovando que, dentro de uma área, as variedades de um determinado animal podem permanecer distintas por longo tempo, seja porque freqüentem locais diferentes, seja porque se reproduzam em épocas ligeiramente distintas, ou seja porque os indivíduos de cada variedade preferem acasalar-se com seus semelhantes.

 

P109

(...) são as formas mais próximas – variedades da mesma espécie e espécies do mesmo gênero ou de gêneros afins – que, em virtude de possuírem estruturas, constituição e hábitos idênticos, via de regra competirão mais renhidamente entre si. Consequentemente, cada nova espécie ou nova variedade, durante o processo de sua formação, irá geralmente pressionar de modo mais forte suas congêneres mais próximas, tendendo a extermina-las.

 

P110

(...) “Principio de Divergência”, segundo o qual as pequenas diferenças, que a principio mal se podiam perceber, vão aumentando até se tornarem nítidas, distinguindo as raças entre si e em relação ao seu ancestral comum.

 

P111

Tomemos o exemplo de um carnívoro quadrúpede, cujo numero máximo capaz de sobreviver num determinado lugar já tenha sido alcançado há bastante tempo. Se houver possibilidade de que sua capacidade natural de multiplicação seja acionada, sem que a região tenha sofrido qualquer alteração ambiental, mas simplesmente em função das variações sofridas pelos descendentes, permitindo-lhes apoderar-se de vagas presentemente ocupadas por outros animais, seu numero certamente há de aumentar. Alguns dos descendentes poderiam, por exemplo, devorar outros tipos de presas, vivas ou mortas. Outros poderiam ocupar novos hatitats, aprendendo a viver nas arvores ou a caçar na água. E outros talvez pudessem tornar-se menos carnívoros. Quanto mais diversificados se tornarem os hábitos e a estrutura dos descendentes, maior numero de lugares lhes será permitido ocupar. O que vale para um, vale para todos e deve ter valido através dos tempos – desde que haja variações, pois de outro modo a seleção natural não poderia ter agido.

 

CAPÍTULO V – LEIS DA VARIAÇÃO

 

P126

Diversos exemplos poderiam ser citados de indivíduos da mesma variedade produzidos sob condições de vida absolutamente diferentes, assim como, por outro lado, de variedades inteiramente diferentes que se teriam originado da mesma espécie sob condições climáticas absolutamente idênticas. Esses fatos mostram a maneira indireta pela qual devem agir as condições de vida. Também inúmeros exemplos são conhecidos de todos os naturalistas quanto a espécies que se mantiveram imutáveis, sem apresentar qualquer variação, embora vivendo sob condições climáticas inteiramente opostas. Considerações como estas inclinam-me a atribuir insignificante importância à ação direta das condições de vida. Indiretamente, como já se observou, elas parecem desempenhar papel importante no que se refere a afetar o sistema reprodutor, deste modo induzindo a variabilidade, e depois a seleção natural complementará sua atuação, acumulando todas as variações proveitosas, por menores que sejam, até que se tornem completamente desenvolvidas e suscetíveis de serem apreciadas por nós.

 

P127

Se muitos indivíduos enfrentassem com sucesso essa batalha, o resultado seria um; se a tentativa fosse suspensa e os indivíduos passassem a voar raramente, ou nunca, o resultado seria outro. É o mesmo que ocorre com pessoas que naufragam próximo da costa: os bons nadadores têm a ganhar se se lançarem a nada em busca da praia, enquanto que os maus nadadores agem mais corretamente ficando onde estão e procurando agarrar-se aos destroços do navio.

 

P128

Do mesmo modo que na Madeira as asas de certos insetos aumentaram de tamanho, enquanto que as de outros insetos foram reduzidas pela seleção natural, auxiliada pelo uso e desuso, no caso do rato-das-cavernas a seleção natural parece ter aceito o desafio da falta de luz, aumentando o tamanho dos olhos, enquanto que, no caso dos demais habitantes das frutas escuras, o próprio desuso seria o responsável pelas variações neles verificadas.

 

P131

No conjunto, acho que podemos concluir que o habito, o uso e o desuso, em certos casos, desempenham papel importante na modificação da constituição e da estrutura dos diversos órgãos, mas que os efeitos do uso e desuso muitas vezes se combinam com a seleção natural das diferenças inatas, sendo por vezes dominados por esta.

P134

Geoffroy, o velho, e também Goethe, quase na mesma época, formularam sua lei de compensação ou equilíbrio de crescimento, que o segundo assim expressou: “Para gastar de um lado, a Natureza é forcada a economizar de outro”.

 

Se, sob condições de vida modificadas, uma estrutura antes útil passa a apresentar menor utilidade, qualquer redução de seu desenvolvimento, por pequena que seja, será aceleradas pela seleção natural, visto ser proveitoso para o indivíduo não dispender seu alimento no sustento de uma estrutura inútil.

 

Deste modo, acredito que a seleção natural sempre terá êxito no longo processo de poupar-se de um desgaste através da redução e perda de qualquer parte do organismo, tão logo esta se torne supérflua, são em que isso de modo algum acarrete o desenvolvimento correspondente de outra parte qualquer. E, de modo inverso, que a seleção natural possa perfeitamente ter êxito em desenvolver grandemente qualquer órgão, sem que isso acarrete a necessidade de uma compensação, isto é, de se reduzir outra parte adjacente do organismo.

 

P138

Não vejo razão para duvidar de que a batalha que se trava entre a seleção natural, de um lado, e a tendência à regressão e à variabilidade, do outro, há de um dia chegar ao fim, fixando-se a conformação até mesmo dor órgãos que se desenvolveram de maneira mais anormal. Deste modo, quando uma parte do corpo, por mais anormal que seja, transmitiu-se quase nas mesmas condições a numerosos descendentes modificados, como no caso das asas de morcego, essa parte deve ter existido por longo tempo numa condição quase imutável, não sendo mais variável que qualquer outra parte.

 

Se num gênero rico em espécies, algumas têm flores azuis e outras flores vermelhas, a cor seria apenas um caráter especifico, não sendo de se espantar se eventualmente umas espécies de flores azuis produzissem variedades de flores vermelhas, e vice-versa. Mas se todas as espécies tivesses unicamente flores azuis, essa característica passaria a ser genérica, e a variação mencionada poderia ser considerada como uma circunstancia inteiramente anormal.

 

P141

Espécies diferentes apresentam variações análogas, e uma variedade de determinada espécie eventualmente adquire características de uma espécie afim, ou readquire características de um antigo ancestral.

 

Penso que ninguém irá duvidar de que essas variações análogas sejam devidas ao fato de terem as diversas raças de pombos herdado de um antepassado comum, a mesma constituição e tendência à variação, podendo esta tendência ser acionada por circunstancias ignoradas por nós.

 

O reaparecimento de caracteres perdidos há muitas gerações, talvez centenas, sem duvida que se trata de um fato deveras surpreendente.  (...) Depois de uma dúzia de gerações, a proporção do sangue, usando a expressão vulgar, de um dos ancestrais é de apenas 1:2048.

 

Quando uma característica perdida reaparece numa raça após grande numero de gerações, a hipótese mais provável não é a de que o descendente subitamente saia parecido com um ancestral distante centenas de gerações, mas que, em cada geração que se sucedeu, sempre existiu, nos descendentes, a tendência a reproduzir a tal característica, até o dia em que, sob condições favoráveis e desconhecidas, esta tendência se manifeste num dos descendentes.

 

 

CAPÍTULO VI – OBJEÇÕES À TEORIA

 

P150

 

(...) a extinção e a seleção natural andam de mãos dadas. Portanto, se considerarmos que toda espécie descende de alguma outra forma desconhecida, tanto os ancestrais como as variedades intermediárias, via de regra, já devem ter sido exterminados, em razão do próprio processo de formação e aperfeiçoamento das novas formas.

 

(...) enquanto uma se torna cada vez mais rara, a outra se mostra cada vez mais freqüente, até que a primeira desaparece por completo.

 

(...) todo ser vivo se relaciona com outros de maneira importantíssima, direta ou indiretamente, então veremos que a área de ocorrência dos habitantes de um lugar de modo algum depende exclusivamente das condições físicas que se modificam insensivelmente, antes dependendo em grande parte da presença de outras espécies que lhes servem de alimento, ou que os destróem, ou que competem com eles.

 

P154

Considerando-se não um determinado período de tempo, mas todo o tempo, seguramente devem ter existido numerosíssimas variedades intermediárias, interligando em gradação quase imperceptível todas as espécies de um mesmo grupo. Entretanto, o próprio processo de seleção natural tende constantemente, como tantas vezes frisamos, a exterminar as formas ancestrais e os elos de ligação.

 

Veja-se o caso do vison norte-americano, do gênero Mustela, que possui patas dotadas de membranas, e que se assemelha à lontra no que se refere à pele, às pernas curas e à forma da cauda: durante o verão, este animal mergulha em busca dos peixes que lhe servem de presa; durante o longo inverno, porem, evita as águas geladas e passa a viver como as demais doninhas, alimentado-se de camundongos e outros animais terrestres.

 

(...) e se o peixe-voador, que atualmente apenas consegue planar, elevando-se ligeiramente e sustentando-se no ar com a ajuda de suas barbatanas vibratórias, já tivesse alcançado um tal estagio de desenvolvimento que pudesse ser considerado como dotado de asas perfeitas? Neste caso, quem poderia imaginar que num antigo estagio de transição esses peixes vivessem no alto-mar e usassem seus incipientes órgãos de vôo exclusivamente, segundo nos parece, para escaparem de ser devorados pelos outros peixes?

 

(...) é difícil – e, para o nosso caso, irrelevante – afirmar se, de modo geral, os hábitos se modificam primeiro e a conformação subseqüentemente, ou se ligeiras modificações estruturais acarretam alterações de hábitos; o mais provável é que ambas as modificações muitas vezes ocorram quase simultaneamente.

 

Já na planície do Prata, onde não crescem arvores, vive um tipo de pica-pau que ostenta inteira semelhança com os da nossa espécie comum, seja no que se refere às partes essenciais de sua conformação, seja quanto ao tom estrídulo de seu pio ou ao percurso ondulado de seu vôo, numa clara evidencia de sua consangüinidade – entretanto, trata-se de um pica-pau que jamais trepou em arvores!

 

P159

A maneira pela qual um nervo poderia vir a se tornar sensível à luz interessa-nos tanto quanto a resposta à indagação sobre a origem da própria vida; não obstante, posso adiantar que diversos fatos levam-me à suposição de que qualquer nervo sensitivo poderia tornar-se sensível à luz, da mesma maneira que poderia tornar-se sensível às vibrações responsáveis pela produção de sons.

 

Devemos ser extremamente prudentes ao concluirmos que um órgão não se possa ter formado através de algum tipo de evolução gradual. Entre os animais inferiores, poderíamos citar diversos exemplos de um órgão que realiza simultaneamente as mais diversas funções: na larva da libélula e nos peixes do gênero Cobites, o canal alimentar respira, digere e excreta.

 

Na historia natural “natura non facit saltum”.

 

Com base na teoria da seleção natural, podemos compreender tranqüilamente por que é assim, pois a seleção natural só pode agir tirando proveito de variações ligeiras e sucessivas; saltos, não pode dar, tendo de avançar a passos bem curtos, e do modo mais lento que se possa imaginar.

 

P166

A cabeça pelada dos abutres é geralmente considerada como uma adaptação direta a seu habito de espojar-se em materiais em putrefação. Neste caso, porem, a conclusão tem de ser cautelosa, uma vez que também observamos esta característica no peru, que só se alimenta de matéria fresca.

 

(...) admito sem restrições que muitas estruturas não são diretamente úteis para seus possuidores. As condições físicas provavelmente devem ter tido algum efeito sobre a conformação estrutural, independentemente de qualquer proveito que decorra da variação adquirida.

 

P168

A seleção natural possivelmente não seja capaz de produzir alguma modificação numa espécie exclusivamente para o bem-estar de outra, embora a natureza seja pródiga de exemplos relativos a espécies que se beneficiem de conformações estruturais de outras.

 

A seleção natural jamais irá produzir num ser algo que lhe seja prejudicial, pois sua ação só se volta em prol e beneficio de cada criatura. Segundo observou Paly, nenhum órgão seria formado com a finalidade de provocar dor ou produzir danos a seu possuidor. Se se fizesse um balanço dos benefícios e malefícios causados por cada parte, o resultado sempre se mostraria positivo. Se com o passar dos tempos, em decorrência da variação das condições de vida, alguma parte se tornar nociva à espécie, ela será modificada; caso contrario, a espécie se extinguirá, como tantas e tantas vezes já ocorreu.

 

A seleção natural tende apenas a dotar cada criatura de um grau de perfeição igual ou ligeiramente superior ao dos outros habitantes da região com os quais ela terá de lutar para sobreviver. (...) Acaso poderíamos considerar perfeitos os ferroes das vespas ou das abelhas, sabendo que estes, quando usados para atacar os inimigos desses insetos, não podem ser retirados, já que são serrilhados para dentro, e que por isto seu possuidor fatalmente morrerá, desde que a perda do ferrão acarretará também a perda de suas vísceras?

 

Se considerarmos o ferrão da abelha como tendo originalmente existido num ancestral remoto como um instrumento perfurante e serrilhado, como os de diversos membros desta mesma grande ordem, e que depois se modificou para se adaptar à sua finalidade atual, sem contudo atingir um grau de aperfeiçoamento correspondente, com o veneno adaptado originariamente para provocar ferimentos leves e posteriormente potencializado, talvez possamos compreender por que a utilização do ferrão sói provocar a morte do próprio inseto: desde que a ferroada tenha utilidade para toda a comunidade, isto por si já preenche os requisitos da seleção natural, ainda que acarrete a morte de alguns de seus membros. (...) Ainda que nos cause revolta, temos de admirar a aversão selvagem e instintiva da abelha-rainha, que a leva a destruir, logo que nascem, as filhas-rainhas, pois do contrário estas mais tarde a trucidariam. Amor materno ou ódio materno, embora o ultimo seja felizmente bem mais raro, ambos no fundo são a mesma coisa, ante os inexoráveis princípios da seleção natural.

 

Quando duas variedades se formam em duas regiões de uma área continua, por vezes aparece uma variedade intermediária, adaptada às condições de vida existentes na região de transição. Tal variedade intermediária, porem, é via de regra pouco numerosa, conforme procuramos demonstrar. Consequentemente, as duas variedades extremas, durante seu processo de modificação, terão em seu maior numero uma decidida vantagem sobre a variedade intermediária, que assim será geralmente suplantada e exterminada por elas.

 

Por conseguinte, os habitantes de uma região restrita serão via de regra superados pelos das regiões maiores, como geralmente se verifica. Isto se deve ao fato de que as regiões maiores normalmente possuem maior numero de indivíduos e de formas mais diversificadas, o que torna a competição entre eles mais acirrada, elevando o padrão de perfeição necessário à sobrevivência. Assim, a seleção natural não terá de produzir necessariamente a perfeição absoluta, e esta, tanto quanto nos permite julgar nosso limitado conhecimento, não deverá ser encontrada em nenhum lugar deste mundo.

 

Admite-se geralmente que todos os seres organizados tiveram sua formação regulada por duas grandes leis: a Lei da Unidade de Tipo e a Lei das Condições de Existência. Por “unidade de tipo” entende-se aquela concordância fundamental de conformação que observamos nos seres organizados pertencentes à mesma classe, a qual independe inteiramente de seus hábitos de vida. Pela minha teoria, a unidade de tipo é explicada pela unidade de descendência. Já a expressão “Condições de Existência”, sobre a qual tantas vezes insistiu o celebre Cuvier, está plenamente contida no principio da seleção natural, uma vez que esta age quer adaptando atualmente as partes variáveis dos seres a suas condições de vida orgânicas e inorgânicas, quer já as tendo adaptado durante o longo transcurso dos tempos, ajudada em alguns casos pelo principio do uso e desuso, afetada ligeiramente pela ação direta das condições externas de vida, e sempre subordinada às diversas leis de crescimento. Portanto, a lei maior é, efetivamente, a das Condições de Existência, já que ela engloba, através da hereditariedade das adaptações anteriores, a Lei da Unidade de Tipo.

 

 

CAPÍTULO VII – INSTINTO