EXTRATO DE: PILARES DO TEMPO

Ciência e religião na plenitude da vida

 

Autor: Stephen Jay Gould - 1999

Ed. Rocco - 2002

 

 

O que é ciência?

A ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural, desenvolvendo teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por sua vez, opera na esfera igualmente importante, mas completamente diferente, dos desígnios, significados e valores humanos – assuntos que a esfera factual da ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar.

 

[A proposta de Gould]

Proponho que concentremos esse princípio central de não interferência respeitosa – acompanhado de um intenso dialogo entre as duas disciplinas distintas, cada uma cobrindo uma faceta central da existência humana – enunciando o Princípio dos MNI, ou Magistérios Não-Interferentes.

 

[Eu preferi chamar de Convívio de Magistérios]

 

Um magistério é uma área onde uma forma de ensinamento tem as ferramentas apropriadas para um discurso e solução significativos.

 

A esfera ou magistério da ciência engloba o mundo empírico: de que é feito o universo (fato) e por que ele funciona de determinada maneira (teoria). O magistério da religião engloba questões de significado definitivo e valor moral. (...) A ciência se interessa pelo tempo, e a religião, pela eternidade; a ciência estuda como funciona o céu, e a religião como ir para o céu.

 

Se a religião não pode mais estabelecer as conclusões factuais da natureza, que fazem parte do magistério da ciência, então os cientistas tampouco podem alegar qualquer conhecimento de uma verdade moral a respeito da constituição empírica do mundo. A humildade mutua leva a conseqüências práticas importantes em um mundo feito de paixões tão diversas. Todos ganharíamos se abraçássemos o principio e aproveitássemos as conseqüências.

 

Jesus a Tomé: “Abençoados sejam os que acreditam sem ter visto.”

 

Uma atitude cética em relação a afirmações baseadas apenas na autoridade, combinada com uma necessidade de provas diretas é o primeiro mandamento do procedimento cientifico correto.

 

O objetivo de respeito mútuo exige sobretudo a compreensão mútua.

 

[A religião ajusta a realidade (os fatos da natureza) às aspirações espirituais dos seres humanos e a ciência proporciona instrumentos para ajustarmos nossas aspirações aos fatos da natureza.]

 

Nas palavras de Huxley: “Não nego nem afirmo a imortalidade do homem. Não vejo razão para acreditar nisso, mas, por outro lado, não tenho como desmenti-lo.”

 

Huxley expõe os três aspectos não-interferentes da integridade pessoal- a religião para a moralidade, a ciência para os fatos e o amor para a santidade.

 

[Nós e Eles] Em que condições temos o direito de conduzir outras espécies à extinção ao eliminar seus habitats naturais?

 

PIO XII, na encíclica Humani Generis (1950), afirma não haver oposição entre a evolução e a doutrina da fé no homem e em sua vocação.

 

[E João Paulo diz] Hoje, quase meio século depois da publicação da encíclica, novos conhecimentos levaram ao reconhecimento da teoria da evolução como mais do que uma hipótese. É de fato evidente que essa teoria foi progressivamente aceita por pesquisadores, depois de uma série de descobertas em varias áreas de conhecimento. A convergência, nem buscada nem fabricada, dos resultados de trabalhos realizados de forma independente é por si só um argumento significativo a favor da teoria.

 

De Alexander Pope:

“A natureza e as leis da natureza se encontravam escondidas na noite

Deus disse: ‘Faça-se Newton’, e tudo se tornou luz.

 

Praticamente todos os grandes pensadores cristãos afirmavam que nosso planeta era redondo. O venerável Bede se referia à Terra como orbis in medio totius mundi positus (uma esfera localizada no centro do universo) no século VIII. As traduções de muitos textos gregos e árabes para o latim no século XII contribuíram muito para propagar os conhecimentos gerais de ciência natural entre os pensadores, particularmente a astronomia – e as convicções sobre a esfericidade da Terra foram disseminadas e fortalecidas.

 

Lactâncio (1541) ridiculariza escrevendo: “Poderá existir alguém tão inepto para acreditar que os homens que vivem nesses extremos andam de ponta-cabeça [quorum vestigia sint superiora quam capita]... que as arvores crescem de cabeça para baixo e que a chuva e a neve e o granizo caem para cima em vez de para baixo [pluvias, et nives, et grandinem sursum versus cadere in terram]?”

 

A saga das tentativas por parte dos criacionistas de banir o ensino da evolução, ou de forçar sua própria versão fundamentalista da história da vida a entrar no currículo das escolas públicas, representa um dos episódios mais interessantes, peculiares e persistentes da história cultural dos Estados Unidos no século XX.

 

Arkansas e a Lousiana aprovaram no final da década de 1970 leis de “tempo igual” para o ensino do criacionismo e da teoria da evolução.

 

O inimigo não é a religião, mas o dogmatismo [o sectarismo, eu diria] e a intolerância, uma tradição tão antiga quanto a espécie humana e impossível de ser extinta sem uma eterna vigilância, que é, como proclama uma famosa expressão, o preço da liberdade.

 

Se hoje podemos tomar algo como a evolução e tornar seu ensino nas escolas públicas um crime, amanhã poderemos tomar um crime seu ensino nas escolas particulares e no ano seguinte poderemos tornar um crime seu ensino nas assembléias ou na igreja. E na sessão seguinte podemos banir os livros e jornais... A ignorância e o fanatismo estão sempre ocupados e precisam de alimento. Estão sempre se alimentando e pedindo mais. Hoje são os professores das escolas públicas; amanhã, os das particulares. No dia seguinte, os pastores e palestrantes, as revistas, livros, jornais. Depois de um tempo, Sua Excelência, será uma luta de homem contra homem e crença contra crença, até que, com bandeiras ao vento e tambores rufando, voltemos à época gloriosa do século XVI, quando crentes acendiam fogueiras para queimar os homens que ousassem trazer alguma inteligência, luz e cultura à mente humana.” Clarence Darrow, em seu pronunciamento final no julgamento de Scopes, em 1925.

 

Bryan [e a maioria das pessoas] nunca compreendeu que a verdade factual, da maneira como for constituída, não pode ditar nem sequer sugerir a verdade moral. Qualquer argumentação que afirme que fatos ou teorias de evolução biológica podem provocar ou justificar qualquer comportamento moral representa uma utilização extremamente equivocada da grande descoberta de Darwin e uma violação explícita dos MNI.

 

As campanhas políticas dos criacionistas americanos representam – conforme interpretação usual e correta – uma tentativa inadequada de partidários de uma visão marginal e minoritária dentro do magistério da religião de impor suas doutrinas ao magistério da ciência.

 

O leitor americano padrão de 1900 provavelmente aceitava o racismo, com seu grupo étnico no topo da pirâmide, como um ditame da natureza, e provavelmente defendia a expansão imperialista do poder americano.

 

Nenhum caminho único pode ter todas as respostas em nosso mundo infinitamente complexo.

 

“Alguns homens que se dizem pessimistas por não poderem ver nada de bom nas operações da natureza se esquecem de que não podem ver nelas nada de mau. Em matéria de moral, a lei da competição não justifica o egoísmo ou a brutalidade pessoal, oficial ou nacional da mesma maneira que a lei da gravidade não justifica que se atire em um pássaro.

 

 

 

 

 

 

 

 “Ah, Amor! Se juntos pudéssemos conspirar contra o Destino

Para compreender todo esse triste Esquema de Coisas,

Não poderíamos reduzi-lo em pedaços – e entoa

Remoldá-los de acordo com os Desejos do Coração!” [acho que o correto é “?”]

 

Vivemos em um vale de lágrimas (ou ao menos em uma terra de confusão) e então nos apegamos a qualquer conforto oferecido, não importa quão dúbia seja sua lógica, ou quão contrária às provas.

 

Em Essay on Man, de Alexander Pope (1733-34):

 

“Situado nesta extremidade de um estado mediano,

Um ser profundamente sábio e rudemente poderoso...

Ele se encontra no meio; em dúvida quanto a agir ou descansar;

Em dúvida quanto a se considerar um deus, ou um animal...

Criado tanto para ascender quanto para cair;

Grande senhor de todas as coisas, e ao mesmo tempo presa fácil;

Único juiz da verdade, sempre sujeito ao erro;

A glória, orgulho e enigma do mundo!”

 

Essa angústia quanto à natureza e à compreensão do homem pode gerar “fantasias de resgate”, para citar uma frase típica da terapia contemporânea. Buscamos nos situar em um planeta benevolente, acolhedor, confortável e vasto, crido para suprir nossos desejos materiais e construído para nossa dominação e deleite. (...) Devemos empreender sozinhos a jornada mais difícil de todas: a busca pelo significado em um lugar ao mesmo tempo totalmente im penetrável e bem perto de casa – dentro de nosso frágil ser.

Devemos portanto, com boa vontade e otimismo, acatar a demanda intransigente dos MNI: reconhecer o caráter pessoal dessas batalhas humanas a respeito da moral e do significado e parar de procurar respostas definitivas na construção da natureza. No entanto, muitas pessoas não suportam considera a natureza um “objeto transitório” – um cobertor quente de criança para reconfortar os adultos.

 

 

 

[Penso: o reconhecimento de sua pequenez infinita e, portanto, infinita incapacidade de controlar seus destino, é que faz o homem imaginar/necessitar um Deus a quem possa pedir misericórdia.]

 

 

Se permitirmos que a natureza defina a moralidade, então devemos alegar que a maneira como a natureza funciona engloba os valores tradicionais de amor, gentileza e cooperação – ou então devemos admitir que os generais alemães de Kellogg estavam certos afinal, que o caminho do meio e os Dez Mandamentos representam fantasias inatingíveis e que a ordem moral inclui assassinatos e pilhagens freqüentes.

 

Diz Darwin: “Vemos com gratidão a face brilhante da natureza, vemos frequentemente a abundancia de alimento; não vemos ou nos esquecemos de que os pássaros que cantam à nossa volta vivem basicamente de comer insetos ou cimentes e portanto estão constantemente destruindo a vida; ou nos esquecemos da freqüência com a qual esses cantadores, ou seus ovos, ou seus ninhos, são destruídos por outros pássaros e predadores.

 

O comportamento reprodutivo da “vespa icneumônida (um grupo de várias centenas de espécies de insetos e não uma única criatura) não poderia ser mais nojento ou mais repugnante. A mãe vespa procura outro inseto, em geral uma lagarta, como hospedeiro para seus filhotes. Ela então injeta seus ovos no corpo do hospedeiro ou o paralisa com seu ferrão e coloca os ovos em cima dele. Quando os filhotes nascem, as larvas comem o hospedeiro vivo, geralmente paralisado – mas com muito cuidado, deixando o coração e outros órgãos vitais por ultimo, para que o hospedeiro não apodreça e arruíne o banquete. (Seguido o espírito de falsas comparações, podemos fazer uma analogia entre esse comportamento e a antiga punição de arrastar e esquartejar os traidores, um procedimento desenvolvido com o mesmo propósito cruel de adiar a morte para uma tortura máxima.)

 

“O sr. Hollister diz que as vespas pegam aranhas e as colocam em seus ninhos no chão – vivas, mamãe! – e lá elas vivem e sofrem durante dias e dias, com as vespinhas famintas mastigando suas partas e devorando suas barrigas o tempo todo, para torná-las boas e religiosas e agradecidas a Deus por sua piedade infinita. Eu gosto muito do sr. Hollister e o acho muito gentil; pois quando lhe perguntei se ele trataria uma aranha daquela maneira ele disse que preferiria ser amaldiçoado a fazer isso; e então ele... mamãe querida, você desmaiou!”

Mark Twain, em “A pequena Bessie ajudaria o destino”

 

Darwin em resposta a Asa Gray:

“Admito que não posso ver de uma maneira tão simples quanto os outros, e da maneira como gostaria de fazê-lo, as provas do desígnio e beneficência que nos rodeiam. Parece-me haver muita miséria no mundo. Não posso me convencer de que um Deus beneficente e onipotente tenha propositalmente criado as icneumônidas com a intenção precisa de fazê-las se alimentar dos corpos vivos de lagartas ou que um gato deva brincar com ratos.” [antes de matá-los]

 

As lagartas não sofrem para nos ensinar alguma coisa; elas foram simplesmente superadas, por enquanto, no jogo evolutivo. Talvez em algum momento no futuro desenvolvam um conjunto de defesas adequadas, decidindo assim a sorte das icneumônidas.

 

Todos reconhecemos a principal fraqueza da frágil humanidade – nossa propensão para acalentar a esperança e a lógica, nossa tendência a acreditar naquilo que desejamos em vez de naquilo que observamos.

 

A natureza é amoral. A natureza não liga a mínima para nós.

 

A natureza não demonstra nenhuma preferência estatística por ser quente e confortável ou feia e repugnante. A natureza apenas existe.

 

Como Darwin, devemos admitir que a natureza não oferece nenhuma instrução moral. Em outras palavras, devemos tomar o banho frio definitivo na natureza e reconhecer que, em nossa busca específica, viemos ao lugar errado. Esse “banho frio” pode parecer chocante à primeira vista. No entanto, à medida que experimentamos seu revigoramento, passamos a considerar a imersão não triste ou deprimente, mas sim estimulante e libertadora. Se deixarmos de procurar a verdade moral na realidade material, poderemos finalmente apreciar o fascínio da natureza e seu poder de resolver questões diferente, mas igualmente poderosas, em sua própria área. E quando rejeitarmos o canto da sereia da falsas fontes, estaremos livres par buscar soluções para questões de moral e significado em seu lugar apropriado – dentro de nós mesmos.

 

Os fatos da natureza não estão integrados em nenhuma trama controlada de um universo planejado e determinista, com um significado preciso para a queda de cada pétala e de cada gota de chuva.

 

O que, a não ser nossa perigosa e injustificada arrogância, nos permite vislumbrar um status preferencial para uma espécie dentre as centenas de milhões com que conta a história de nosso planeta?

 

Para qualquer um que se sinta cosmicamente desmotivado diante da possibilidade da vida ser um detalhe num vasto universo aparentemente não construído para nossa presença, ofereço duas contra-argumentações como consolo. Considerem, em primeiro lugar, o fascínio e o desafio intelectual muito maior de um universo misterioso mas decifrável, comparado com um cosmos mais “amigável” e familiar que apenas espelha nossas esperanças e necessidades. Contemplem então, em segundo lugar, a feliz possibilidade de realizar a máxima socrática “conhece-te a ti mesmo”, tentando ativamente conceber uma natureza interior distintamente humana, em vez de absorver passivamente uma natureza exterior generalizada, à medida que lutamos para definir a razão de nossas vidas.

 

O Homo sapiens também pode ser considerado uma “coisa tão pequena” em um vasto universo, um acontecimento evolutivo muito improvável e não a manifestação de um desígnio universal. (...) sempre considerei essa visão da vida estimulante – uma fonte tanto de liberdade quanto de conseqüente responsabilidade moral. Somos filhos da história e devemos encontrar nosso próprio caminho nesse universo tão diversificado e interessante quanto possível – um universo indiferente ao nosso sofrimento e que portanto nos oferece toda a liberdade de triunfar, ou de fracassar, da maneira que nós mesmos escolhermos.

 

Fico feliz por estar aqui, mas não vejo como algum argumento para a existência de Deus possa derivar do meu prazer.

 

 

 

 

 

 

 

Glossário:

 

Poligenismo – a noção de que o homem tem ancestrais múltiplos.

 

Evangelho – literalmente, boas novas.

 

Irenismo – da palavra grega “paz”, o que tende a promover a paz, especialmente no que diz respeito às diferenças teológicas e eclesiásticas.

 

Rubaiyat – plural de ruba’i, uma forma poética especifica de quatro linhas com rimas na primeira, na segunda e na quarta.

 

Sincrético – flagrante comprometimento religioso ou filosófico; ecletismo ilógico ou que leva a incongruência; aceitação sem criticas de crenças ou princípios conflitantes ou divergentes. Webster Dictionary.