EXTRATO DE: O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA

Autor: Michael J. Sandel

Ed. Civilização Brasileira - 2012/2014

 

O Mercado e a Moral

A crise financeira não serviu apenas para pôr em dúvida a capacidade dos mercados de gerir os riscos com  eficiência. Generalizou também a impressão  de que os mercados desvincularam-se da moral e de que de alguma forma precisamos restabelecer esse vínculo.

 

Veja-se por exemplo, a proliferação de escolas,  hospitais e prisões inseridos no sistema da busca de lucro, assim como a terceirização da guerra a empresários militares privados. (No Iraque e no Afeganistão, as forças de fornecedores privados tornaram-se mais numerosas do que as tropas militares americanas.)

 

Veja-se o eclipse das forças policiais públicas por empresas de segurança privada - especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, onde o número de guardas particulares chegou a mais do que o dobro do número de policiais da força pública.

 

Ou então vejam-se (....) um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que chega perto de permitir a compra e venda das eleições.

 

Quando todas as coisas boas podem ser compradas e vendidas, ter dinheiro passa a fazer toda a diferença do mundo.

 

A remuneração de crianças para que leiam livros pode levá-las a ler mais, mas também faz com que passem a encarar a leitura como um estorvo, e não como fonte de satisfação em si mesma.

 

A diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta de organização de uma atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de via em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformatadas à imagem do mercado.

 

Se alguém estiver disposto a pagar por sexo ou por um rim e um adulto se dispuser a vende-lo, a única pergunta que o economista faz é: "Quanto?"

 

1 - Furando a fila

 

A desvantagem, naturalmente, é que o atendimento preferencial de alguns poucos implica relegar os demais às salas de espera abarrotadas dos outros médicos. Levanta, assim, a mesma objeção suscitada por qualquer esquema de pista livre: é algo injusto para os que marcam passo na pista engarrafada.

 

Haveria algo de errado em contratar pessoas para ficarem na fila ou com o tráfico de formas de acesso? A maioria dos economistas considera que não Eles não se identificam muito com a ética da fila. Se eu quiser contratar um sem-teto para ficar na fila por mim, perguntam, por que alguém haveria de ser queixar? Se preferir vender o meu acesso em vez de usá-lo, por que seria impedido?

 

Costumamos associar o conceito de corrupção a lucros indébitos. Mas a corrupção não é apenas uma questão de suborno e pagamentos ilícitos. Corromper um bem ou uma prática social significa degradá-lo, atribuir-lhe uma valoração inferior à adequada.

 

O que há de errado com os cambistas?

 

Por que será que certos casos de remuneração para entrar em filas ou furá-las e de tráfico de acesso nos parecem condenáveis e outros não?

 

Mas o que o porta-voz da Igreja tentava dizer era algo diferente: embora seja possível comprar entradas de um cambista para ter acesso a uma missa do papa, o espírito do sacramento fica comprometido se a experiência for posta à venda.

 

Economistas que examinaram os valores cobrados num show de Springsteen chegaram à conclusão de que, ao cobrar um preço inferior ao de  mercado, ele abria mão naquela noite de algo em torno de US$ 4 milhões.

Por que então não cobrar o preço de mercado? Para Springsteen, manter os preços das entradas em patamar relativamente acessível é uma maneira de se manter vinculado com os fãs da classe trabalhadora.

 

Cada uma dessas transações suplanta a ética da fila (esperar pela vez) com a ética do mercado (aceitar um preço pro um serviço mais rápido).

 

Não há qualquer motivo para presumir que um único princípio - entrar na fila ou pagar - deva determinar a distribuição de todos os bens.

 

2 - Incentivos

 

Uma medida dessa transformação é o crescente uso de incentivos monetários para resolver problemas sociais.

 

Remunerar alguém para ser esterilizado é um exemplo flagrante. Eis aqui um outro: em várias partes dos Estados Unidos, o sistema escolar passou a tentar melhorar o desempenho acadêmico com a remuneração das crianças para estimulá-las a tirar boas notas ou obter boa pontuação em testes de avaliação. A idéia de que os incentivos em dinheiro podem resolver os problemas de nossas escolas surge como um pano de fundo do movimento pela reforma educacional.

 

Há motoristas abastados que consideram as multas por excesso de velocidade o preço a pagar para dirigir na velocidade que quiserem. Na Finlândia, a lei investe pesadamente contra essa maneira de pensar (e de dirigir) ao basear o valor da multa na renda do infrator. Em 2003, Jussi Salonoja, de 27 anos, herdeiro de uma fábrica de salsichas, recebeu uma multa de 170 mil euros por dirigir a 80km por hora numa zona com limite de velocidade de 40. (...) A multa na Finlândia mostra que a sociedade não quer apenas cobrir os possíveis custos de um comportamento arriscado; quer também que a punição seja adequada ao delito - e à conta bancária do infrator.

 

O suborno às vezes funciona. E pode eventualmente ser indicado. Se a remuneração de estudantes de mau desempenho para que leiam livros melhorar consideravelmente sua capacidade de leitura, podemos considerar a opção na esperança de mais adiante ensinar-lhes a gostar de aprender. Mas  é importante lembrar que estamos envolvidos num ato de suborno, uma prática moralmente dúbia que substitui uma norma mais elevada (a leitura pelo prazer da leitura) por outra inferior (ler para ganhar dinheiro). [Discordo totalmente. Com esta idéia ele simplesmente destrói qualquer sistema de incentivo, inclusive as medalhas olímpicas, e qualquer prêmio por qualquer coisa (se previamente anunciado).].

 

"Uma economia é simplesmente um grupo de pessoas interagindo na condução de suas vidas. Greg Mankiw

 

Para Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner "os incentivos são a pedra angular da vida moderna e a economia é, basicamente, o estudo dos incentivos".

 

[Para eles] A economia "simplesmente não lida com a moralidade. Ela representa a maneira como gostaríamos que o mundo funcionasse, e a economia representa a maneira como ele de fato funciona".

 

Um dos princípios centrais da economia é o efeito preço - quando os preços aumentam, os indivíduos compram menos determinado bem e quando os preços caem, compram mais. Esse princípio geralmente se aplica quando falamos, por exemplo,, do mercado de televisões de tela plana.

Como vimos, contudo, na não se pode contar tanto dom ele quando aplicado a práticas sociais governadas por normas alheias ao mercado, como chegar na hora para pegar o filho na creche. Quando o preço de chegar tarde aumentou (ao passar a ser cobrada uma taxa que não existia), os atrasos aumentaram.

 

3 - Como o Mercado descarta a moral

 

Se o ato de presentear é uma atividade de fenomenal desperdício e ineficácia, por que insistimos nela?

 

A generalizada compra e venda de sangue desmoraliza a prática da doação gratuita.

 

Roussseau tinha um ponto de vista (...). Quanto mais um país exige dos seus cidadãos, maior sua devoção a ele. "Numa cidade bem organizada, todo homem acorre às assembléias." Sob um mau governo, ninguém participa da vida pública, "porque ninguém está interessado no que acontece nela", e as "preocupações domesticas concentram toda a atenção".

 

[Do economista Lawrence Summers] "Todos nós temos uma reserva limitada de altruísmo. Economistas como eu pensam no altruísmo como um bem valioso e raro que precisa ser conservado. Muito melhor preservá-lo concebendo um sistema no qual as necessidades das pessoas sejam satisfeitas pela prática individual do egoísmo, preservando-se o altruísmo para nossas famílias, nossos amigos e os muitos problemas sociais deste mundo que não podem ser resolvidos pelo mercado.

 

4 - Mercados na vida e na morte

 

Em certos estados, as empresas podiam até comprar seguros de vida e receber benefícios pela morte de filos e cônjuges dos empregados.

O seguro do zelador era particularmente popular entre grandes bancos, entre eles o Bank of America e o JPMorgan Chase. No fim da década de 1990, alguns bancos exploraram a idéia de não se limitarem aos empregados, comprando seguros de vida também em nome de depositantes e titulares de cartões de crédito.

 

Como você se sentiria se ficasse sabendo que o seu empregador contratou uma apólice de seguro de vida em seu nome sem seu conhecimento ou sua permissão? Talvez se sentisse usado. Mas teria motivos para se queixar? SE a existência da apólice não lhe fizesse nenhum mal, por que teria o seu empregador o dever moral de informá-lo a respeito ou de obter o seu consentimento? [Por que isto implica em um incentivo/desejo à minha morte.]

 

A criação de condições em que os trabalhadores têm mais valor mortos do que vivos é algo que os coisifica; eles são tratados como mercadorias a futuro, e não como empregados cujo valor para a empresa está no trabalho que executam. (...) Parece difícil entender por que o sistema fiscal deveria estimular as empresas a investir bilhões na mortalidade dos empregados, e não na produção de bens e serviços.

 

O problema moral no caso dos viáticos não é a falta de consentimento. É o fato de consistir em apostas na morte que tornam os investidores profundamente interessados num rápido falecimento das pessoas cujas apólices compraram.

 

Você por acaso gostaria de ganhar a vida apostando que determinadas pessoas vão morrer em breve?

 

Os participantes dos bolões da morte não se limitam a fazer apostas: compartilham uma cultura. Investem tempo e energia na pesquisa de expectativa de vida das pessoas nas quais apostam. Desenvolvem uma indecorosa preocupação com a morte de celebridades.

 

O mercado de futuro do suco de laranja concentrado é capaz de prever melhor o tempo na Flórida do que o Serviço Nacional de Meteorologia.

Uma das vantagens dos mercados de previsão em relação aos métodos tradicionais de coleta de inteligência está no fato de que os mercados não estão sujeitos às distorções da informação causadas por pressões burocráticas e políticas.

 

Esse desumano tipo de apostas na morte corrói a decência e a empatia humanas e deve ser desestimulado, e não promovido, pelo governo.

 

As drogas capazes de prolongar a vida de pacientes de AIDS foram uma bênção para a saúde, mas uma maldição para a industria dos viáticos.

 

As batalhas entre as companhias de seguros e a industria do acordo de vida deu-se também em assembléias legislativas de todo o país. Em 2007, A Goldman Sachs e outros bancos fundaram a Associação Institucional dos Mercados de Vida para promover a indústria do acordo de vida e resistir às tentativas de restringi-la.

 

5 - Direitos de Nome

 

Nos supermercados, adesivos de promoção do mais recente filme de Hollywood ou da nova série da televisão a cabo começaram a aparecer em maçãs e bananas. Ovos com anúncios de programação de outono da rede CBS apareceram na seção de hortifrutigranjeiros.

 

Assim, para decidir em que circunstancias a publicidade é adequada e quais aquelas em a não convém, não gasta argumentar com direitos de propriedade, por um lado, e de equidade, por outro. Temos de levar em conta também o significado das práticas sociais e os bens que corporificam. E a cada caso devemos perguntar se a comercialização da prática pode degradá-la.

 

Em 1983, as empresas americanas gastaram US$ 100 milhões em publicidade voltada para crianças. Em 2005, o gasto foi de US$ 16,8 bilhões. Como as crianças passam a maior parte do dia na escola, os profissionais de marketing trabalham agressivamente para alcançá-las lá mesmo. E a falta de verbas para a educação só contribui para fazer com que as escolas públicas se disponham de bom grado a abrir-lhes os braços.

 

O objetivo da publicidade é recrutar consumidores; o objetivo das escolas é cultivar cidadãos.

 

A era do triunfalismo de mercado coincidiu com uma época em que o discurso público se esvaziou consideravelmente de qualquer substância moral e espiritual.

 

Alem dos danos que causa a bens específicos, o comercialismo corrói o comunitarismo.

 

Democracia não quer dizer igualdade perfeita, mas de fato exige que os cidadãos compartilhem uma vida comum. O importante é que pessoas de contextos e posições sociais diferentes encontrem-se e convivam na vida cotidiana, pois é assim que aprendemos a negociar e respeitar as diferenças ao cuidar do bem comum.

E assim, no fim das contas, a questão do mercado significa na verdade tentar descobrir como queremos viver juntos. Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?