É MEIO INCONVENIENTE

Parte I

 

Estão aí revistas e jornais a discutir se as empresas e indivíduos podem ou não utilizar a mensagem eletrônica em suas ações de marketing. Dentro das próprias listas de discussão, a questão até parece estar fechada num alto e sonoro "NÃO!", seguido de um "sai pra lá Satanás!".

 

Email inconveniente esse, sô! Mas crucial para o desenvolvimento da Internet como canal de comunicação, seja com que objetivo for. Para discuti-lo, deixo, desde já, uma questão para você ir pensando: deve uma forma de comunicação interpessoal (assim como a face a face, por telefone, por radioamador e por correspondência tradicional) sofrer algum tipo de censura? Para ajudá-lo a encontrar uma resposta, vou abordar alguns aspectos envolvidos. 

 

Se existe uma coisa chata é perder privilégios. Dia desses, infiltrou-se na minha caixa uma mensagem me conclamando a sair em passeata contra a privatização da Vale do Rio do Doce, assinada, se não me engano, por uma Associação de Engenheiros de Não-me-lembro-mais. Sem analisar outros aspectos, todos hão de concordar que existe um forte componente de defesa da manutenção do status quo dada a incerteza quanto ao futuro. Na Internet algo parecido acontece.

 

Mensagens do tipo acima estão sendo chamadas de MNS (Mensagem-Não-Solicitada), seja lá o que isso possa realmente significar. Penso que deve ser a primeira vez na história da humanidade que, para nos comunicar com alguém, precisamos ter mais do que a simples identificação (nome, telefone ou endereço). Precisamos de uma permissão de comunicação. Ou seja, para dizer “Oi! Muito prazer.”, eu preciso, primeiro, perguntar se a pessoa me autoriza a me dirigir a ela. Mas para isso, eu preciso dizer: “Oi! Muito prazer.” E agora!!!??? Coisa esquisita, não!? Mas isso tem suas origens.

 

A cultura ainda dominante na Rede, expressa, principalmente, nas normas éticas de comportamento em listas e grupos de discussão, as já famosas netiquetas, se desenvolveram num ambiente fechado, não comercial e não social. Durante mais de 20 anos (!), a Internet foi intensa e exclusivamente utilizada para servir aos propósitos de pesquisa e comunicação de uma comunidade acadêmica e entidades não-governamentais. Era uma Internet, digamos, institucional e entendida como uma ferramenta de trabalho (de uso restrito dos “iniciados”) e não como um meio de comunicação aberto e público. Nestas circunstancias, é fácil compreender que qualquer mensagem não pertinente (off topic como gostam de dizer) era um ruído a ser evitado pois prejudicava o desenvolvimento do trabalho. É importante notar que, sendo gratuito o acesso para o usuário,  não existia razão financeira. Enfim, era uma Internet sisuda, onde só se falava coisa séria e pertinente ao “topic”. É fácil entender, então, que essas pessoas não estão gostando nada nada dessa história da Rede ser usada para outros fins. Pior ainda, para fins mercadológicos. Argh! escanecem eles, exercendo o sagrado direito de resistir.

 

Acontece que a Internet explodiu para fora do mundo institucional. Ganhou novos usos e usuários num espaço de tempo reduzidíssimo, considerando-se a complexidade das tecnologias envolvidas. Nela, tudo ainda é (e será ainda por algum tempo) experimental. Da nova Internet pouco se sabe. Desconfia-se. Essa nova Rede não tem especialistas, apenas generalistas perdidos no espaço. Sem conhecimento de causa, aceitamos o comportamento que os mais antigos na tribo dizem que devemos ter. Sem uma cultura para as novas aplicações, adotamos a cultura original, até que novos costumes sejam estabelecidos. Com o tempo e o uso, mudanças nos referenciais de comportamento serão implantadas. Estas  mudanças se darão tão mais rápida e intensamente quanto mais rapidamente os novos usuários predominarem na rede.

 

Quero me servir de outro fato da vida e que tem exemplo na história da Rede. A Internet nasceu, fruto de uma encomenda do exército americano. Sua tecnologia foi desenvolvida e implantada com dinheiro público. Era propriedade do governo americano até que... deixou de ser. Principalmente, porque o tal governo informou à comunidade que “the dream is over”, como já previra John Lennon. Assim, apesar de ainda existir um sentimento que a Internet é do Tio Sam, o máximo que eles poderiam fazer, hoje, seria criar uma USA-NET através de um imenso firewall para filtrar todas as Mensagens-Não-Solicitadas por eles.

 

Uma segunda coisa chata é que a liberdade é um grande negócio quando se trata da minha, mas é uma... uma... droga, vai, quando se trata da liberdade dos outros. Quem frequenta listas de discussão sabe bem o tamanho do problema. Na prática, a questão das MNS significa que enviar mensagem como aquela lá dos Engenheiros pode, porque é... digamos, politicamente correta. Mas ai de mim! se fizer a asneira de mandar um email para a tal Associação oferecendo, por exemplo, meus serviços de consultoria.

 

Por outro lado, já se disse que o reacionário de amanhã é o progressista de hoje.  Ou seja, quando jovens, nós somos contra todo o sistema vigente, seja ele qual for. Com o passar dos anos vamos descobrindo que  mudanças, em primeiro lugar, não são bem-vistas. Em segundo lugar, quando elas acontecem, não é fruto da nossa vontade, mas da vontade de uma maioria. Devidamente amadurecidos, entendendo que mesmo a utopia de uma comunidade igualitária e fraterna passa pela aceitação de um conjunto de regras que precisam ser estáveis, tornamo-nos reacionários e a palavra “mudança” passa a representar uma ameaça dos deuses.

 

Junte estas ponderações e você terá um campo minado, onde cada passo dado representa uma decisão de alto risco e onde, evidentemente, acontecem muitas explosões. E nem sempre se salvam todos.

 

Até aqui, a coisa era bastante simples. Na antiguidade, para enviar uma mensagem, chamava-se um estafeta e o botávamos pra correr - e assim nasceu a maratona. Com o telefone e a Telerj, a maratona não acabou, mas ficou bem mais fácil. Levanta-se o telefone do gancho, disca-se uma seqüência de números e, do outro lado, nos atende, sempre educadamente, um interlocutor. Fácil, não!?

 

No lado do receptor, a coisa não era menos simples. Ao atender uma chamada, logo identifico quem me liga e se o assunto não me interessa, digo-o, educadamente, sem acessos de ira. Pelo correio, seleciono o que não me interessa e deixo na lata de lixo mais próxima. Se é pela televisão ou rádio, mudo de estação. Se jornal ou revista, viro a página. É tão simples! Simples?

 

Nem tanto. Nada é simples quando o objeto, o foco da questão, é novo. Absolutamente novo. E complexo. E assustador. E desestabilizador. A Internet é isso tudo e mais. Dia desses a Cristina De Luca, do caderno de Informática ETC de O Globo, atribuiu ao email o status de “a maior invenção dos últimos 20 anos”.

 

Qualquer um de nós viu filmes de ficção científica onde a comunicação se dá por um videofone. Agora, eu tenho um, bem aqui, na minha frente.

 

Quantas vezes sonhei em ser um astrônomo, só pra poder ter um daqueles telescópios gigantes e poder mergulhar nos mistérios do... buraco negro. Hoje, qualquer aluno do segundo grau (só lá na matriz, por enquanto) pode fazer isso da sala de aula!

 

"Acorda, Paulo!". Me deixa Regina! Viro pro lado e perco a hora e o emprego. Queremos ganhar na loteria só pra poder mandar o patrão pro... espaço. "Carece mais não" diria a avó da Regina, lá no interior. Sem culpa e sem riscos, me levanto no meio do dia, depois de trabalhar até o fim da madruga. Sou um teleworker, telebrabalhador ou, como querem uns, um telecomutador, o novo profissional que faz tudo de casa, de pijama e chinelo (argh!), toma o cafezinho que ele mesmo faz e espalha farelo de crem-craker no teclado.

 

Essas coisas acontecendo e tem gente dizendo que não solicitou o meu email!? Ora bolas! Acha que vou ficar esperando sentado que alguém me envie uma Mensagem-Não-Solicitada para me autorizar a me comunicar com ela? Quem nasceu primeiro...? Enquanto eu espero sentado, vai ver se eu estou lá na esquina. ;-) )

 

Quando a telefonia celular chegou no Brasil, a tarifação era toda debitada na conta do titular da linha. Nem por isso as pessoas entravam em estado de cólera quando recebiam uma ligação... como direi... não solicitada.

 

Agora tem gente que espuma de ódio só porque recebeu uma MNS. Já vi cada resposta que eu vou te contar! Coisa pra sair tiro. Mas o que provoca tamanha indignação? Por que não reagimos da mesma maneira quando recebemos uma ligação de um serviço de telemarketing qualquer, “pesquisando” sobre um interesse particular qualquer?

 

Uma das grandes mudanças trazidas pela "mídia" Internet, é a mudança de assinatura no cheque que vai pagar a conta da comunicação. Na mídia eletrônica tradicional (rádio e televisão) e na mídia de comunicação direta (correio e telefonia), o custo é alto e integralmente debitado ao emissor da mensagem. O princípio é de que paga a conta quem quer se comunicar.

 

Na Internet a mudança é radical, pois paga a conta - no mínimo o custo mensal da conexão à rede - quem recebe a comunicação. Aqui o custo para o emissor é baixo (nem tanto quanto querem fazer parecer) e tende a baixar mais se nada for alterado no futuro. Na outra ponta, o receptor, antes sem custo, passa a ter que colocar a mão no bolso todo final de mês. Mas qual a relevância das MNS no total do custo de conexão do mês? Absolutamente nenhuma. Mais custo tem a resposta à MNS. Aí é que começamos a chegar no núcleo da questão. No sentimento que todo homem normal, lúcido, de mente sã, tem: medo daquilo que não domina.

 

O que nos assusta não é o fato de estarmos pagando alguns centavos, ou mesmo reais, por certo número de MNS. O problema está em não sabermos qual poderá vir a ser este número. Na mala direta tradicional, nós já o conhecemos. Recebemos, todo dia, em nossas caixas de correio, um volume de mensagens que não nos causa nenhum desequilíbrio emocional porque sabemos que ele não ultrapassará o limite do desejo das empresas de jogar dinheiro fora. Nem mesmo nos incomodamos com o fato de alguma empresa de venda de endereços estar ganhando dinheiro com isso. Nem mesmo nos indignamos por estarem distribuindo nosso endereço sem nossa autorização.

 

Na Internet ainda fazem falta mecanismos de equilíbrio, aquelas variáveis que obrigam o emissor a se aprimorar na seleção do conteúdo e dos destinatários de seus emails. Do outro lado, falta o recurso de filtragem estar em todos os programas de correio eletrônico. Hoje, qualquer um envia milhares e milhares de mensagens em alguns minutos, ao custo de R$ 2,00/hora mais alguns centavos por impulso, devidamente subsidiado por esse nosso híbrido sistema capitalista. Por falta de alternativa, algumas pessoas têm como variável de equilíbrio, uma reação indignada ao receber uma MNS. A agressividade com que ela se manifesta (devidamente protegida pelas características do meio) tem a mesma função do latido do cachorro. É só pra intimidar. É uma maneira de dizer que estamos com medo.

 

Afora alguns intolerantes mais ranhetas, a maioria de nós sabe da importância da comunicação (publicitária ou não). Ela é informação orientadora para a tomada de decisão no dia-a-dia, tanto no campo pessoal quanto profissional. Quando feita com criatividade, a propaganda ainda nos diverte, distrai e até nos incita à reflexão. Portanto, ela está revestida de utilidade. É por isso que as pessoas não são, no conjunto, contra o marketing direto ou qualquer outra mídia. Elas apenas precisam de tempo para conhecer e dominar essa tecnologia que bem podia chegar mais de mansinho.

 

Por essas e outras, não perca a Parte II. Enquanto isso tome cuidado com quem não gosta de discutir esse assunto e usa muito o eufemismo “mensagem não solicitada”. Você poderá estar diante de um reacionário - aquela pessoa que é contrária à liberdade - dos outros, é claro -, despótica, tirana, como define o “Aurélio”. Ou apenas (muito provavelmente), perto de alguém que apenas ainda não teve tempo pra pensar direito na questão.

 

Use o lema: não bata, debata. Faz bem à liberdade e à democracia.