É MEIO INCONVENIENTE

Parte II

 

 

Eu confesso: I was a “fool on the hill”. Nesta montanha de informação que a Rede me traz, eu pequei. Fui leviano (como certa jornalista admitiu) ao repassar boato sobre vírus em email. Fui mal-educado e grosseiro (como o Sérgio Mota) com quem estava apenas exercendo a liberdade de dizer o que pensa. Fui irresponsável e juvenil (como o Cézar Maia) quando disparei dezenas de replies sobre uma mensagem off topic. E, pior, desprezei minha capacidade de discernimento e fui um grande boboca. Como penitência por tanta tolice, me redimo perante vós e me submeto à execração pública. Puni-me! com todo o rigor, para que não mais caia em tentação. Não peço clemência e quero ser meu próprio acusador. Contar-vos-ei, email a email, meus crimes para que a justiça se faça. Inequívoca.

 

Tenho sido, como ser humano, um bicho danado. Arisco como só. Busco aproximação, mas a repudio. O contato com o outro me atrai e me amedronta. Nesta dialética caminho em avanços e recuos. Na nova tribo, adoto  uma postura de reserva e observação. Imito para não ser alijado. Me calo para não ser notado. Meus primeiros atos no mundo virtual não passam de replicagem (novo termo do net-dialeto) das manifestações alheias. Deixei-me liderar por quem nunca vi. Segui ideais que não eram meus. Falei sobre o que não entendo. Comportei-me como robô e pensei como andróide. Assim fui eu, até que...

 

Quê diabos está acontecendo aqui!? e desencadeei um rosário de interrogações. Qual a diferença entre junk mail e junk email? Entre abrir a minha caixa postal física e a eletrônica? Por que tanta intolerância com a liberdade dos outros? Que hipocrisia é esta que só me revolto quando a MNS é uma MNI (mensagem que não me interessa)? Que meio democrático é esse que não aceita numa sala virtual o mesmo que acontece em qualquer sala real? Onde está escrito que tenho o direito de agredir quem posta uma mensagem que não me interessa? Por que tanta ira contra um email se é tão mais fácil descartá-lo, mais fácil que a uma visita ou ligação indesejada? De onde vem tanta arrogância? Do distanciamento físico que nos livra de receber o revide, o soco, o troco pela agressão? Eu diria as mesmas palavras cara-a-cara? Não, claro que não! Se o fizesse, todos se afastariam de mim. Mas antes de refletir, impensadamente eu agi.

 

Chegada a hora, posso vos confessar. Entrei num debate sobre “correntes” e fui logo agitando: “existe algum meio de se PROIBIR este tipo de coisa?” Reparai que fiz questão de ”gritar” a palavra “proibir” e de qualificar o teor como “este tipo de coisa”. O fiz para deixar bem clara a minha posição autoritária e impositiva. Alguns estranharam tais palavras. Em outras oportunidades houvera defendido uma Internet anárquica, libertária, socializada, colaborativa e sem dono e outras utopias mais. Mas não lhes dei atenção, pois logo recebi manifestações de apoio. Até me aconselharam a “mandar de volta para a caixinha do tal remetente babaca uma porrada de replies”. Ah! Como me senti reforçado! Pensei: estou agindo como “eles”, logo logo serei um deles! Para vos ser honesto, achei irracional perder tempo fazendo aquilo e indaguei aos meus botões: botão, botão meu, existe sujeito mais tolo que eu? Por que simplesmente não deletar a mensagem? Mas cadê coragem para questionar os conselhos dos mais antigos? Preferi pensar que os replies serviam  para dar um corretivo na fulana (imitando o estilo feminista do C@T). Qual o quê! Logo outro veterano relatou: “Recebi uma corrente e revidei 30, acrescentando ao texto: SORTE PRA VOCE!! Sabem o que aconteceu? Ele ainda agradeceu! putz!!! Tem gente que não tem jeito mesmo...” Eu errei, sem dúvida, mas hás de condescender: mesmo entre nós, tem gente que não tem jeito mesmo!

 

Fuçando meus emails, sinto um cheiro de mofo. Será que ficarei na história como um “daqueles intolerantes” que enviavam mensagens grosseiras, quando não ameaçadoras, pensando serem os reis da cocada preta? Ou serei lembrado como um dos filhos dos deuses, responsável pela multiplicação dos emails inconvenientes, prejudicando a comunicação de todos? Imploro-vos que, julgado, condenado e tendo minha pena cumprido, venhais a conceder-me o direito de ver apagadas de todos os folders, de todos os usuários, de todos os servidores, todas as mensagens que fizeram prova neste mais que justificado julgamento.

 

Ó juizes de minhas faltas! Revendo meu passado me envergonho. Devo expurgar esta culpa, exorcizar os medos, livrar minh’alma do pensamento retrógrado, aliviar minha consciência e purificar meus sentimentos para que possa, com a dignidade restaurada, retornar a um convívio harmonioso no ciberespaço.

 

Mas o tempo passou, as idéias voaram e a minha poupança se esvaiu em custo de conexão despendido com mail-bombs corretivos. Demorei (mais do que devia, direis) a entender que “temos de conviver com isso e o jeito é ignorá-los e não contribuir para a perpetuação da espécie“ como admitiu outro pecador arrependido como eu. Nada mais lógico e prático. Econômico. E não estressante. Além de ser uma atitude, comunitariamente... correta. Eu me penitencio.

 

Em minha defesa invoco apenas o meu passado. Por gênese, sou um tolerante. A maioria de nós o é. Somos condescendentes, solidários e prestimosos. Passei minha infância em cidade pequena, casa de beira de rua. Recebíamos, todos os dias, VNS (visitas não solicitadas) e jamais as agredimos. Era o bêbado oficial do bairro a quem minha mãe alimentava, mas negava um trocado “se não ele compra cachaça”; era o maluco-beleza de um dia ou outro, tratado com reservas; era o mendigo de todo dia que sempre conquistava umas moedas; era o cão, era o gato, ambos famintos; era a vizinha da xícara de arroz nunca devolvida, lá se vão sacas e sacas; era a vendedora blim-blom da Avon trazendo as últimas fofocas da vizinhança; era o cobrador implacável da conta atrasada, denunciando nossa inadimplência; era o biscateiro sondando “um servicinho” ou qualquer coisa, para quem a mãe sempre tinha uma “branquinha” bem guardada, "claro! ele não é cachaceiro!!!"; era o garoto atrás da pipa caída no quintal; era o ladrão de galinha, saltando o muro, fugindo da policia, invadindo a casa, implorando cumplicidade. Sem falar na pelada de domingo, quando a bola caia no mail box (desculpe, é o hábito), caía no domínio da casa da vizinha ranzinza com zanga de garoto feliz. Prometia, jamais cumpria, não era besta, passar a faca na bola, mas esbravejava pela tarde, fazendo-nos cientes de que “não sou mulher de aturar invasão e que da próxima vez...“ Foram tantos e são tantos os inconvenientes do mundo... sem os quais não teríamos do que queixar, do que sorrir, do que conversar ou aprender. Sem os quais a vida seria uma grande chatice.

 

Neste ciberespaço, acreditai senhores jurados, agi contra minha própria índole. Fui o corruptor de mim mesmo. Vendi e comprei a mim mesmo em não tão suaves conexões. Certo dia recebi uma mensagem sobre uma nova lista. Senti como se minha casa estivesse sendo invadida pelo pior dos bandidos. Apontei e disparei: “como foi que você conseguiu o meu email e com que direito me inscreveu na sua lista? Mas como tenho interesse no assunto, vou ficar”. Foi quando percebi mais uma das minhas incoerências e me pus frente a frente com meu espelho.

 

Aquela mensagem foi a luz que clareou meu caminho. Mas apesar de tanta luz, ainda assim, não consegui me ver blasfemando contra a companhia telefônica que fatura vendendo nossos endereços para empresas de mala direta e nossos números de telefone para as de telemarketing, sem nos pedir e sem nos pagar tostão de royalties. Mas me vi, isto sim, fornecendo a qualquer um os mesmos dados. Aconteceu quando fui assistir palestra em uma universidade e forneci meu nome, endereço, telefone, endnet, sem nada perguntar, só para concorrer a uma reles camiseta promocional. Não passei de um espião de meus próprios segredos. Nem ao menos me senti ofendido por ser tratado como um idiota. Mas ó! graças aos céus! não fui o único. Todos agiram da mesma forma e não me senti, solitário, reduzido a bit. E todos eles eram usuários de Internet e pertencentes à tribo acadêmica, não-comercial, da qual já vos falei em audiência passada. Ireis, com razão, perguntar: “por que reagias tão diferentemente a uns e a outros?". Não tenho esta resposta, mas já posso vos dizer que consigo, sem muito esforço, o vosso endnet como consigo o vosso telefone ou o endereço de vossa casa ou de vosso escritório.

 

Ah! Quando me lembro que indagava “com que direito?” me enviavam mensagem! Mas jamais perguntei com que direito me telefonavam, me escreviam ou mesmo se dirigiam a mim pessoalmente. Não percebia que ao adquirir uma linha, autorizo, implicitamente, a companhia a incluir meu nome, endereço e número de telefone em um catálogo acessível a qualquer pessoa que queira se comunicar comigo. De que me serve um meio de comunicação se não posso me comunicar? De que me serve a Internet se não para fazê-lo com mais eficiência? O direito de me dirigir a quem tem um endereço eletrônico é o mesmo que qualquer um tem de me ligar para oferecer seus serviços. Este direito de ligar para alguém é o mesmo direito de enviar uma correspondência, por email ou snail mail. Não posso condenar quem bate à minha porta. Quem tenta se comunicar, seja lá por que meio for, tem o inalienável direito de ser educadamente tratado.

 

Foi no final daquela mensagem que toda a minha incoerência se evidenciou. Foi também a prova de que não existe MNS e sim MNI (mensagem que não me interessa). Após as pretensiosas indagações, aceitei a permanência na lista. Frente a tamanha ignomínia, me calo, pois não há defesa para quem não quer pagar o preço de suas convicções.

 

Neste solene instante, perante este superior tribunal, desnudado de couraças e máscaras, vos confesso: eu fui intolerante e inconveniente. Não invocarei as pressões dos tempos modernos. A tolerância não se vincula a tempo ou espaço. Basta um olhar ao derredor e ver que não espancamos nossos bêbados nem nossos loucos; não chutamos nossos cães e gatos de rua; não cuspimos em nossos mendigos nem ofendemos nossa esquecida vizinha; não atiramos em nossos insistentes credores nem surramos nossos chatos vendedores; e sem ofensas, dizemos um “sinto muito” ao biscateiro. As pipas já não caem em nosso quintal porque aqui já não há mais quintais,  mas os ladrões nos invadem mais e mais. E continuamos a aceitar entre nós todos os intolerantes que ameaçam entupir nosso box só porque a mensagem caiu no login errado. Preciso que me julgais porque só aprenderei a conviver com as inconveniências do outro quando perceber minha própria inconveniência.

 

Mensagem não solicitada!? Reconheço, não sei o que significa. Enxergo apenas as MMIs, umas mais, outras menos inconvenientes, e me pergunto: para que tenho telefone ou por que dou meu endereço se não sei lidar com as inconveniências? Por que moro numa comunidade se não sei contornar os conflitos? Por que a liberdade do outro me incomoda tanto? Por que insisto em pensar que o mundo só seria bom se fosse do meu jeito?

 

E para não ser mais que meio inconveniente, encerro esta minha prosopopéia. Como epílogo, lembro-vos que a mensagem propondo um ganho fácil foi inconveniente, mas me fez refletir sobre o grande cassino que é o Brasil, funcionando, legalmente, em qualquer esquina. E eu achei isso conveniente. Não achais? Mas alguma coisa nós temos em comum. Freedom.

 

Use o lema: Não bata, debata. Faz bem à liberdade e à democracia.