PRIVACIDADE
EM TEMPOS MODERNOS
Minha caixa
de emeios está entupida. Fuçaram as páginas da web e
encontraram meus dados de contato. Todos. De todos nós. Sem reservas nos
incluem em bancos de dados e nos vendem a 100 reais em pacotes de 1 milhão.
Meu celular
não para. Desligo. Religo. Estão lá, listadas, todas as chamadas. Quando
verifico descubro que são ligações não-solicitadas feitas pela própria
operadora gerando faturamento por arbitrariedade. Ligo para reclamar e a voz
monocórdia me adverte que “esta ligação está sendo gravada” e tudo poderá ser
usado contra você, é óbvio.
Entramos na
era "pós Cicarelli". Caiu a ficha de todos
depois que o juiz inexperiente revogou sua decisão ao descobrir-se esculhambado
na chacota mundial. Percebemos de forma grotesca que espernear é jogar no
ventilador. Seja pego e cale-se, essa é a dica. Recolha-se a bandeira da
privacidade. Icemos a imagem de Andy Warhol expondo a
língua de fora de Mick Jagger. Que premonição! Quanta gozação! Por quanto tempo
mais esse artista do absurdo ainda se manterá tão realista e rindo à boa de
nossa cara? No além, diga-se.
O que é privacidade?
Quem sabe que se apresente. Mas depois de sexo em público, digital e
celularmente registrado, quem há de responder? O que é privacidade se vale tudo
para conquistarmos nossos 15 segundos?
Onde está a
privacidade? Na home do blog
“sou pedófilo, sim, e daí”, feito Ana Carolina na capa de Veja? Ou feito Chico
saboreando lábios sem baton em águas salgadas dos
mares do sul? Talvez instalando uma web-câmera no banheiro de casa para
divulgar ao mundo nossa total falta de pudor. Por quê
não?
Talvez dando
tchauzinho para alguma câmera instalada em alguma
rua, feito Londres, de algum metrô, feito Paris, de algum elevador ou corredor,
feito qualquer lugar. Ou de algum posto, de alguma farmácia, de algum
supermercado, de algum estádio, de alguma guarita de algum condomínio. Onde
entro, por onde passo, pela porta que saio.
Privacidade
não deveria ser expor meus piores ângulos a julgamento e condenação, tudo a vista
de dezenas de câmeras de TV transmitindo ao vivo a 39,99 por mês. Ou deveria?
Escolha um plano, o básico, apenas cenas de sala e cozinha, ou o completo, com
tomadas indecentes do banheiro e outras picantes e sugestivas do que pode estar
acontecendo sob os lençóis da cama. Para assinar, não precisa sair de
casa. “Aguarde nossa ligação” com seu
inútil bina ligado. De nada serve desligar porque
“nós sabemos seu número, onde mora, onde trabalha”, e seus desejos mais
inconfessos. A cobrança virá inclusa na conta de telefone. Pronto, você já é
mais um bisbilhoteiro de plantão, mas antes informe seus dados mais íntimos
para uma pesquisa de hábitos de consumo; marque a opção “quero receber
diariamente a newsletter com as últimas ofertas”; autorize o débito em conta
e você já pode praticar sua masturbação diária!
Privacidade,
a que te reduziram? A um login,
infinitas senhas e frases de confirmação? Qual era mesmo o nome do meu primeiro
cachorrinho? Privacidade, a que te reduziram? A um pensar em solidão? Solidão?
Como, se já querem instalar um chip sob minha pele para saber 24/7 onde estou, com quem estou e o que faço? Como, se já estão
tecnologicamente preparados para colocar um nanochip
dentro de minha caixa craniana? Ele substituirá alguns dos meus neurônios,
identificando angústias e acionando um micro-dispositivo injetor de adrenalina
e outras “inas”, garantindo retorno imediato à
estabilidade emocional.
“Quem fala?
É seu Paulo?”, me pergunta a voz modelo. “Aqui é do Banco Privado. Precisamos
confirmar alguns dados seus. Pode ser?” Não, não pode. Quem lhe deu meu
telefone? Será um estelionatário? Um falso seqüestro de meu filho? Ou um
verdadeiro seqüestrador da minha sanidade?
Agora querem
meu DNA. Querem estudar a seqüência genética que me gerou, deduzir meu futuro,
predizer meus infortúnios, me negar surpresas e prazeres. Como há poucas vagas
- cada vez menos -, é preciso descartar candidatos, não vão me selecionar,
porque minha “Gene ID” (Carteira de Identidade
Genética) informa que uma Timina trocou de lugar com a Adenina e deu neste ser
que aqui está, e para o que precisam, eu não dou. Fica para a próxima
encarnação.
Privacidade, o
que és? Não sei, mas certamente é muito mais que a mente de um genial e
premonitório George Orwell pôde imaginar.
Paulo Vogel
Rio de Janeiro
de 2007