VIGIAR NÃO É O BASTANTE
O "preço da liberdade é a eterna vigilância". Poucos de nós não ouviram esse conceito um dia. Mas será que é isso mesmo? Penso diferente. Creio que proteger a privacidade (assim como a liberdade) é uma questão de consciência e compromisso pessoal com esta proteção. Porque as tentações para violá-las são muitas.
Já sabemos que parcela maior das quebras de segurança nas empresas parte de seus próprios funcionários. Hoje, qualquer empregado minimamente qualificado tem como ferramenta de trabalho um computador que é parte de uma rede. Ele detém, portanto, conhecimentos básicos para xeretar na hora do almoço ou depois do expediente, por exemplo, a caixa postal de colegas, supervisores, gerentes e diretores, e tomar conhecimento de informações que possam lhe valer de alguma forma, seja vendendo-a a terceiros seja usando-a para prejudicar um potencial competidor na corrida por uma promoção.
Podemos ir mais além. Hoje, com o tamanho de nossa dependência da tecnologia digital, o conhecimento de uma senha pode valer milhões, pode arruinar uma amizade, pode acabar com um romance ou difamar desafetos. Com ela podemos invadir diretórios, bisbilhotar contratos, projetos, planos de negócios e, principalmente, violar a correspondência eletrônica.
Será que contra essa mundialmente disseminada facilidade nos bastará a vigilância? Em meu ponto de vista ela não só não basta como é absolutamente ineficiente. O único instrumento capaz de impedir a violação generalizada da privacidade é a formação de indivíduos comprometidos com a convicção pessoal de ela é o único protetor da liberdade de consciência e pensamento, e, portanto, um direito do cidadão. Mas só incluindo essa formação nos fundamentos da educação poderemos desenvolver um compromisso cotidiano em mantê-la, a qualquer custo, inviolável.
O princípio da liberdade nos diz que ela termina quando a de outrem começa. Em relação à privacidade, o princípio é o da reciprocidade: eu só terei minha privacidade protegida se, intransigentemente, proteger a sua. Não pode haver “se” ou “mas”. Esta defesa tem que ser incondicional porque qualquer alternativa é agir contra a própria integridade.
A questão da privacidade não se dá apenas nestes aspectos que citei. Ela se manifesta em muitas outras ações, dentro e fora da rede. Aqui, abordei apenas um aspecto que está mais próximo a mim na condição de executivo e empresário. Mas esta reflexão foi provocada por 3 matérias que encontrei na imprensa recentemente. As reproduzo a seguir.
Governo chinês instala programas de censura em milhares de computadores ligados à internet
O Partido Comunista que governa a China desde 1949, sabe que não há futuro sem a internet. Mas ainda não tem idéia de como lidar com uma característica perigosíssima da rede: a liberdade de informação. (...) Por lá, o cibercafé é o local preferido de 6 milhoes de internautas por um motivo simples: com apenas 60 centavos de dólar qualquer um pode acessar, incógnito, a rede mundial de computadores durante uma hora. (...)
O regime tenta reagir à altura. Depois de rastrear e prender oito pessoas acusadas de espalhar material subversivo pela internet, a policia política chinesa instalou em milhares de computadores um software criado especialmente para monitorar as informações consideradas ofensivas ao regime. (...) A repressão no ciberespaço faz parte do mesmo fenômeno de caça às bruxas que nas últimas semanas vem ganhando a China. (...) Em muitos paises o acesso à rede continua restrito a um único provedor, controlado pelo Estado, o que facilita a bisbilhotagem oficial. Na Arábia Saudita, a internet só foi legalizada há três anos, tempo suficiente para que os censores proibissem mais de 200.000 sites considerados ofensivos à moral islâmica. Na China, o governo ainda está hesitante. É que somente no ano passado o comércio através da internet atingiu 8,7 bilhoes de dólares, quantia nada desprezível e que tende a crescer à medida que o acesso for facilitado. (...) No tempo de Mao Tsé-tung, quando as delacoes estavam em moda, era perigoso falar mal do governo dentro da própria casa. Hoje, vale espinafrar o regime em família. Mas o partido não tolera quem manifeste publicamente sua insatisfação, nem mesmo por email.
Statewatch é um grupo fundado em 1991 constituído de voluntários, com o objetivo de formar uma consciência coletiva com respeito a liberdade e abertura, sob as óticas civil e governamental. Eles tiveram acesso a documentos sigilosos que vazaram do Conselho da União Européia, recomendando que sejam retidos "todos os telefonemas, chamadas de celulares, faxes, emails, conteúdos de websites e usos de internet feitos em qualquer lugar, por qualquer pessoa".
Tais dados seriam arquivados, organizados e mantidos disponíveis durante sete anos. Segundo a Statewatch, as agências de inteligência alegam ser imprescindível ter acesso a informações sobre cidadão, incluindo email, identidade de equipamentos, user-ids e senhas. Pretendem arquivar nome completo, endereço residencial e detalhes de cartões de crédito. A análise desta assustadora iniciativa está em <www.statewatch.org/nes/2001/jun/07retention.htm>.
A invasão da privacidade, assim como a redução das liberdades individuais, nunca começa pelo seu máximo. É sempre aos poucos e segue num crescente até que, quando percebemos, é tarde, ou extremamente dolorosa a reconquista. Toda vez que uma pessoa, um grupo, um país (seus dirigentes) se arvoram detentores da única verdade, a liberdade de consciência – e, portanto, a privacidade – deixa de exixtir. Vejam o que acontece hoje no Afeganistão.
(A matéria é ilustrada com duas fotos: uma de um nicho na rocha com a imagem milenar esculpida de um Buda e outra sem ela, após sua destruição.
Foram necessários apenas cinco anos desde que se instalaram no poder em Cabul, em 1996, para que os talibãs fizessem o Afeganistão mergulhar de volta na Idade Média. Sob o domínio dessa milícia islâmica de idéias extremistas - renegadas até pelos próprios muçulmanos - o país tornou-se um Estado medieval. As mulheres foram escorraçadas de volta para uma vida de submissão no interior dos lares, minorias religiosas são identificadas por roupas diferentes e a TV foi banida.
Os talibãs nasceram do apoio dos EUA a grupos que lutavam contra a invasão soviética no Afeganistão nos anos 80 e 90. Moldados ideologicamente nas escolas religiosas do Paquistão, eles implantaram no Afeganistão um regime fanático em que a interpretação obscurantista que fazem do Alcorão torna-se a lei nos 90% do país que governam.
Em sua visão distorcida do mundo, os talibãs impedem as mulheres de estudar, trabalhar e dirigir veículos. Os homens, por sua vez, são obrigados a deixar a barba crescer, sob pena de prisão.
Recentemente, determinou-se que os hindus usassem roupas amarelas em público para poderem ser identificados.
Em março, os talibãs revoltaram o mundo ao ordenar a destruição das duas milenares estátuas gigantes de buda no Vale de Bamiyam. O mulá Mohammad Omar, líder do movimento, alegou que imagens reproduzindo figuras humanas eram contrárias ao Islã e mandou dinamitá-las. Todas as outras estátuas do país foram destruídas.
O Globo, domingo, 24 de junho de 2001